sexta-feira, 3 de julho de 2009

AVANÇO DA GRIPE - Vírus deixa chimarrão mais amargo

Autoridades sanitárias na Argentina abrem polêmica ao condenar mate compartilhado

O vírus da gripe que assombra os gaúchos pode atingir um dos símbolos do Rio Grande: a roda de chimarrão, tradição em torno da qual, ao longo dos anos, enquanto a cuia passa de mão em mão, foram tramadas revoluções, realizados negócios, compostas poesias e declarados amores.

Na Argentina – onde já morreram 44 pessoas com a doença –, os médicos da Fundação do Centro de Estudos Infectológicos, Roberto Debbag, e o presidente da Sociedade Argentina de Infectologia, Pablo Bonvehí estão desaconselhando o mate compartilhado por entender que contribui para o alastramento do vírus.

– Seria uma insanidade desaconselhar as rodas de mate – diz o secretário estadual da Saúde, Osmar Terra.

Terra enfileira três razões. A primeira é que o nível da presença do vírus no Rio Grande do Sul é bem inferior ao da Argentina. A segunda é que há um costume entre os gaúchos: o de as pessoas gripadas ficarem fora da roda de mate. Por último, Terra diz que há formas nas quais a transmissão é mais fácil.

– É muito mais perigoso uma mão suja para transmitir o vírus do que o chimarrão – afirma.

Teoricamente, é possível acontecer a transmissão da doença pela bomba de chimarrão, alerta o médico Luciano Goldani, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe da unidade de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. O vírus é transmitido pelo ar, está presente na secreção respiratória, pode se misturar à saliva e ir parar na bomba do mate, mas ele só sobreviverá se a temperatura do metal estiver abaixo dos 70°C.

Breno Riegel Santos, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Conceição, define a situação que se criaria, caso fosse desaconselhada a roda de mate:

– Seria mais uma contribuição para valorizar um vírus menos perigoso que das gripes comuns.

Paixão Côrtes, folclorista e um dos baluartes da cultura gaúcha, lembra que há uma tradição entre os mateadores do Rio Grande do Sul.

– Sempre que alguém sofre de algum mal, como uma gripe, ele não toma o chimarrão – explica.

Faça chuva, faça sol, Manoel Olmedo, 69 anos, está no Arco do Expedicionário, no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, com as suas garrafas térmicas com água quente e uma cuia de mate. Ele integra uma das dezenas de rodas de mate que acontecem pela manhã no parque.

– Tenho essa rotina há mais de 20 anos e não vou interrompê-la agora por causa da gripe – garante.

Fonte: Jornal Zero Hora - nº16018 - 02 de Julho de 2009.

3 comentários:

  1. Creio que nesta situação se vê em ponto pequeno (espero, mas não posso ter a certeza pois não tenho competência para analisar a perigosidade do vírus) uma coisa que nalgumas sociedades já se viu em ponto "grande".
    Refiro-me ao seguinte:

    Os antropólogos e os sociólogos costumam explicar a existência de certos costumes, regras, valores, etc., numa sociedade através da ideia de que tais elementos culturais favorecem a sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas em termos individuais e da sociedade como um todo.
    Por exemplo: roupas quentes permitem enfrentar o frio, a crença num deus amigo dos caçadores corajosos permite enfrentar com mais calma os perigos da caça e, assim, aumentar muito as hipóteses de sobrevivência, etc.

    Mas como explicar certos comportamentos que, embora relacionados com os costumes e valores de uma sociedade, parecem pôr em causa a vida de algumas pessoas, diminuir a qualidade de vida de outras e enfraquecer a própria sociedade?
    Por exemplo: os antigos habitantes da ilha da Páscoa destruíram o meio ambiente da ilha e a sua economia, degradando a própria sociedade ao ponto de ao fim de algum tempo a sobrevivência implicar comer ratos e praticar o canibalismo...
    Uma das causas dessa degradação foi a construção cada vez mais desenfreada e intensiva das célebres estátuas e o costume de realizar uma competição em que os homens tinham de ir a nadar até a uma ilhota num mar bravo e cheio de tubarões.

    Se os costumes e crenças, e outros elementos culturais, visam, em última análise, uma adaptação bem sucedida ao meio ambiente e a qualidade de vida, como explicar a persistência e generalização de tais costumes "suicidas", que levaram a uma brutal diminuição dos recursos naturais e da população?

    As rodas de mate promovem a socialização, reforçam laços sociais e afectivos, etc. Nessa medida contribuem para a coesão social e bem-estar pessoal e colectivo.

    O mesmo se passou na origem dos costumes referidos da ilha da Pascoa. Inicialmente, erigir uma estátua permitia afirmar a identidade do clã (a sociedade estava dividida em clãs) que o fazia e reforçar a coesão grupal (faziam as estátuas para homenagear grandes chefes mortos, feitos heróicos, etc.) - o que os fazia conviver e trabalhar melhor, e lutar contra inimigos externos com mais coragem. Os recursos naturais consumidos eram justificados por essas vantagens e a relação entre o gasto e o ganho era positiva.
    Pode-se explicar de modo semelhante a competição aquática no meio dos tubarões: um ou outro homem morto não anulava os ganhos psicológicos e sociais da demonstração de valentia.

    O problema é que a competição entre os clãs foi cada vez mais longe e tornou-se um fim em si mesmo. A economia e a sociedade pouco a modo foram ficando organizadas à volta desses costumes e, como expliquei, o seu efeito benéfico inicial perdeu-se.

    As rodas de mate têm os efeitos benéficos que referi, mas em condições normais. Uma situação anómala como um vírus especialmente contagioso é uma situação que exige uma adaptação. Teimar em manter o costume apesar da anormalidade da situação significa que o mero costume se tornou um fim em si mesmo - dissociado das consequências benéficas que explicam a sua invenção e generalização social.

    Como é óbvio, esse não é um bom caminho - mesmo que não se trate de um caso tão grave como o declínio da sociedade e respectiva cultura da ilha da Páscoa.

    Cumprimentos!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Carlos,
    Agradeço a visita e pelo seu comentário.
    O chimarrão é sagrado para os gaúchos, e como gaúcha, morando há 12 anos em São Paulo, tomo chimarrão todos os dias. Não consigo ficar sem o mesmo, ele faz parte da minha vida (cultura, ritual),sem o chimarrão parece que faltando alguma coisa.
    A solução é cada um ter o seu próprio chimarrão.

    Abraços,
    Marise.

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