quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ponto de vista: Faxina nos mitos, por Lya Luft



"Boa parte de nossa infelicidade nasce do fato de vivermos rodeados por mitos. Deixamos que aflorem e construímos em cima deles a nossa desgraça"

Boa parte de nossa infelicidade ou aflição nasce do fato de vivermos rodeados (por vezes esmagados ou algemados) por mitos. Nem falo dos belos, grandiosos ou enigmáticos mitos da Antiguidade grega. Falo, sim, dos mitinhos bobos que inventou nosso inconsciente medroso, sempre beirando precipícios com olhos míopes e passo temeroso. Inventam-se os mitos, ou deixamos que aflorem, e construímos em cima deles a nossa desgraça.

Por exemplo, o mito da mãe-mártir. Primeiro engano: nem toda mulher nasce para ser mãe, e nem toda mãe é mártir. Muitas são algozes, aliás. Cuidado com a mãe sacrificial, a grande vítima, aquela que desnecessariamente deixa de comer ou come restos dos pratos dos filhos, ou, ainda, que acorda às 2 da manhã para fritar (cheia de rancor) um bife para o filho marmanjo que chega em casa vindo da farra. Cuidado com a mãe atarefada que nunca pára, sempre arrumando, dobrando roupas, escarafunchando armários e bolsos alheios sob o pretexto de limpar, a mãe que controla e persegue como se fosse cuidar, não importa a idade das crias. Essa mãe certamente há de cobrar com gestos, palavras, suspiros ou silêncios cada migalhinha de gentileza. Eu, que me sacrifiquei por você, agora sou abandonada, relegada, esquecida? E por aí vai...

Ou o mito do bom velhinho: nem todo velho é bom só por ser velho. Ao contrário, se não acumularmos bom humor, autocrítica, certa generosidade e cultivo de afetos vários, seremos velhos rabugentos que afastam família e amigos. Nem sempre o velho ou velha estão isolados porque os filhos não prestam ou a vida foi injusta. Muitas vezes se tornam tão ressequidos de alma, tão ralos de emoções, tão pobres de generosidade e alegria que espalham ao seu redor uma atmosfera gélida, a espantar os outros.

E o mito do homem fortão, obrigado a ser poderoso, competente, eterno provedor, quando esconde como todos nós um coração carente, uma solidão fria, a necessidade de companhia, de colo e de abraço – quando é, enfim, apenas um pobre mortal.

Falemos ainda no mito da esposa perfeita, aquela da qual alguns homens, enquanto pulam valentemente a cerca, dizem: "Minha mulher é uma santa". Sinto muito, mas nem todas são. Eu até diria que, mais vezes do que sonhamos, somos umas chatas. Sempre reclamando, cobrando, controlando, não querendo intimidades, ocupadas em limpar, cozinhar, comandar, irritar, na crença vã de que boa mulher é a que mantém a casa limpa e a roupa passada. Seria bem mais humano ter braços abertos, coração cálido, compreensão, interesse e ternura.

O mito de que a juventude é a glória demora a ruir, mas deveria. Pois jovem se deprime, se mata, adoece, sofre de perdas, angustia-se com o mercado de trabalho, as exigências familiares, a pressão social, as incertezas da própria idade. A juventude – esquecemos isso tantas vezes – é transformação por vezes difícil, com horizontes nublados e paulatina queda de ilusões. É fragilidade diante de modelos impossíveis que nos são apresentados clara ou subliminarmente o tempo todo.

Enfim, a lista seria longa, mas, se a gente começar a desmitificar algumas dessas imagens internalizadas, começaremos a ser mais sensatamente felizes. Ou, dizendo melhor: capazes de alegria com aquilo que temos e com o que podemos fazer numa vida produtiva, porque real.


Lya Luft é escritora

Fonte: Revista Veja

domingo, 19 de dezembro de 2010

O valor das coisas, por Ediovani A. Gaboardi


Estou mudando de cidade e por isso tive de fazer uma limpeza geral na minha casa, preparando-me para desocupá-la. Como é estressante decidir o que vai e o que fica, o que vender, o que doar, o que pôr no lixo ... Essa é a hora de decidir qual é o valor das coisas.

Algumas coisas estão velhas, desgastadas, quebradas, mas tudo isso parece converterse em virtude, significando que as mudanças que sofreram as moldaram à nossa personalidade. Algumas são carregadas de história, de lembranças, e então parece impossível não mantê-las consigo.

Algumas coisas são úteis, outras são apenas belas. Mas aí é preciso pensar se serão úteis no novo lugar em que se vai viver. E as coisas belas, são belas em todos os lugares?

As coisas dizem quem nós somos, mas principalmente quem nós não somos, e esse também é seu valor. Compramos um violão ou uma bicicleta ergométrica na intensão de ir além do que somos cotidianamente. Às vezes vamos, às vezes não. As coisas retratam nossos fracassos e nossos sucessos. Quer conhecer alguém, conheça as suas coisas, mas para além de seu valor econômico.

As coisas têm valor enquanto objetos de desejo. Há coisas que compramos pelo valor que adquirem por serem desejadas pelas outras pessoas. Mas quando precisamos decidir o que é realmente importante manter consigo, muitas vezes concluimos que nem sempre os objetos de desejo da grande massa são realmente importantes.

As coisas que preferimos jogar fora são normalmente as mais velhas. Por que estão gastas? Por que não servem mais? Nem sempre. Muitas vezes apenas porque são velhas.Tente vender um móvel usado e verá o valor do velho. A palavra “usado” quase que anula o valor dos bens de consumo. É como uma mácula, que adere mesmo ao mais bem cuidado dos objetos. O novo pode ser mais fraco, mais feio, mais simples, mas foi abençoado pela virtude da embalagem inviolada. Talvez por isso seja tão difícil cultivar o hábito do reutilizar e reciclar objeto, mesmo diante da crise ambiental que vivemos. A indústria é uma espécie de pia batismal, pela qual os objetos precisam passar para estarem puros ao ponto de poderem ser consumidos.

Mas uma grande alegria que vivemos ao desfazer-se das coisas que ou não queremos ou não podemos carregar ocorre no momento da doação. Muitas vezes temos apenas a intensão mesquinha de livrar-se daquilo que no final das contas se tornou um entulho. Não bastasse a realização desse objetivo, ainda somos brindados com o agradecimento sincero de alguém que se acha ajudado pelo nosso ato. Ainda bem que o que não tem valor para um, muitas vezes tem muito valor para outro.

Mas o mais curioso é aquela situação em que se põe o lixo na rua e rapidamente pessoas o reviram procurando por algo que tenha algum valor. Procuram valor onde não deveria mais haver valor. E encontram. Lembro-me de uma criança que ficou feliz ao encontrar algo, não sei exatamente o que, que repidamente tomou por brinquedo. Deixando de lado a questão social que está em jogo, acho interessante pensar que o valor que damos aos objetos, que se concretiza em seu valor comercial, muitas vezes nos impede de pensar sobre qual é mesmo o valor de cada coisa para nós. Parece que o valor já está dado, é aquele mesmo da etiqueta. Mas o que vale cada coisa mesmo? Aquela criança não havia ainda aprendido que aquilo não valia nada.


Ediovani A. Gaboardi
gaboardi42@gmail.com
Professor da Universidade Federal de Rondônia
Ex-professor do Curso de Filosofia da UPF

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Adolescente que conhece suas origens é agente político

Música, poesia e desenhos de alunos de escolas públicas podem torná-los sujeitos políticos da sociedade

Agência USP

Nas salas de aula de uma escola pública em São Paulo, os alunos não são ensinados a relacionar o conteúdo dos livros à história de sua própria comunidade. Por conta disso, não se sentem pertencentes à humanidade, facilitando a aceitação de rótulos e estigmas como o de "favelado qualquer". Apesar disso, uma pesquisa realizada na Faculdade de Educação (FE) da USP demonstrou o quanto é possível mudar esse quadro utilizando o que é produzido cotidianamente pelos estudantes, como a música, a poesia e os desenhos, para que eles mesmos identifiquem os elos com seus antepassados. Ao fazerem isso, são capazes de se afirmarem como verdadeiros sujeitos políticos "da sociedade" e "na sociedade".

A psicanalista Maíra Ferreira, autora da dissertação A rima na escola, o verso na história: um estudo sobre a criação poética e a afirmação étnico-social em jovens de uma escola pública de São Paulo , aponta a escravidão como a "barbárie brasileira", cujas consequências ainda subjulgam a sociedade, principalmente quando o assunto é pobreza, discriminação e afirmação étnico-social. Com esse olhar, ela estudou durante dois anos uma turma de 30 alunos, amantes do rap, da sétima série de uma escola pública da favela Real Parque, localizada no Morumbi. De 2 a 3 vezes por semana, observava os alunos, conversava com eles e, junto a alguns professores, passou a intervir em sala de aula.
No início de seu trabalho na escola, a psicanalista percebeu que nos tempos vagos entre as aulas, algo comum no dia-a-dia das escolas públicas em todo o Brasil, os adolescentes rimavam, improvisavam e desenhavam com muita facilidade, demonstrando a capacidade crítica inclusive com os temas escolhidos em suas artes. Além disso, o dom da oralidade também chamou atenção da pesquisadora. Contudo, ao mesmo tempo em que apresentavam tão rica manifestação cultural, recusavam suas origens no ambiente escolar.

Segundo Maíra, essa recusa denuncia a "presença e permanência de políticas discriminatórias brasileiras desde a época dos cativeiros". A escola, ao não reconhecer e contextualizar a importância da história da comunidade que atende, e não relacioná-la com o presente dos alunos, "perpetua a formação social e cultural do preconceito brasileiro".


O Nordeste e o Hip Hop

Na sala de aula, a pesquisadora mostrou aos alunos as relações entre a capacidade de rimar e improvisar do rap, um dos elementos do Hip Hop, e as produções culturais do cordel e dos repentes nordestinos. Tratando-se da Favela Real Parque, os estudantes são herdeiros culturais das famílias afro-brasileiras e indígenas Pankararu, oriundas do sertão de Pernambuco, que migraram a partir da década de 1950 para São Paulo principalmente para trabalharem na construção do Estádio do Morumbi.

Em busca dessas evidências de relação entre culturas, Maíra viajou para o Nordeste, para a região do Brejo dos Padres em Pernambuco, onde pesquisou o cordel e os repentes sertanejos como a cantoria de viola e o coco de embolada, expressões claras da tradição da oralidade, tão marcante no rap dos estudantes. Com uma filmadora na mão Maíra andou pelas ruas nordestinas ouvindo e gravando declamações espontâneas: improvisos poéticos de farmacêutico, sapateiro, manicure, dentista, padre, crianças e idosos. "Em uma cidade chamada São José do Egito (PE) ouvi o seguinte ditado: Aqui quem não é poeta é louco e quem é louco faz poesia", disse a pesquisadora.

Segundo a psicanalista, mesmo diante da violência social, a miscigenação étnico-social brasileira apresenta sua resistência: "das rodas de jongos e capoeria aos improvisos dos repentes e do rap está o movimento de resistência, apropriação e criatividade frente às políticas de discriminação existentes desde a escravidão". Essa constatação é a prova de que durante a história do País não houve aniquilação da cultura dos povos que sofreram com tais políticas, e sim recombinação, reinvenção, recriação, ou seja, está aí um outro tipo de "marca humana" - no caso, o desejo de construir e não o de destruir.
Contudo, a "atualidade da escravidão brasileira" ainda aparece no cotidiano do brasileiro. De acordo com a pesquisadora, "a formação social brasileira está longe de elaborar e superar esse trauma que permeia as instituições de ensino e os espaços jurídicos do País". Para isso, é essencial e possível ensinar aos alunos que eles podem e devem "atualizar as suas tradições" a fim de se apropriarem do passado, para construírem seus projetos futuros. Aliás, um dos alunos traduziu muito bem o pensamento de Maíra: "Já sei, professora. É pegar carona na tradição".

A dissertação foi defendida no dia 4 de agosto de 2010, orientada pela professora Mônica do Amaral, e pode ser acessada neste link.


Fonte: Portal Ciência e Vida - Notícias

domingo, 21 de novembro de 2010

Profissionalismo, por Desidério Murcho



Quando há padrões elevados de profissionalismo, a mera competência produz bons resultados. Quando não há padrões elevados de profissionalismo, mesmo o melhor dos profissionais vê o seu trabalho sabotado ou pura e simplesmente anulado pela inépcia dos seus colegas.
A diferença crucial entre o que parece e o que é, e entre o conhecimento superficial das coisas e o conhecimento íntimo das coisas, só pode adquirir-se quando se tem uma experiência profissional de excelência numa qualquer área. Há uma grande diferença entre ler umas coisas sobre estrelas nas horas vagas e ser astrofísico ou astrónomo. A diferença é saber as coisas realmente, em vez de as saber pela rama.
O profissionalismo, contudo, não se dá bem em sociedades da privacidade como a portuguesa. Chamo sociedades da privacidade a sociedades nas quais a vida privada detém o monopólio das atenções das pessoas. Numa sociedade assim desempenha-se uma profissão sem profissionalismo nem gosto, sem excelência nem virtude, porque toda atenção, energia e investimento afectivo está na vida privada. A vida profissional é apenas uma chatice que é preciso aturar por não se poder viver dos rendimentos. Nas sociedades da privacidade o mundo é visto de maneira fundamentalmente infantil. As crianças, efectivamente, não trabalham: o princípio do prazer é omnipresente e só com o tempo vão atendendo ao princípio do trabalho. Nas sociedades da privacidade o princípio do trabalho é visto como as crianças o vêem: mera chatice inevitável, e não fonte de realização, florescimento e virtude.
Nas sociedades da privacidade não há profissionalismo. Comprar um carro é muitíssimo mais importante do que ser competente na nossa profissão. E a discussão pública, nas sociedades da privacidade, é mero latido inconsequente porque ninguém realmente sabe coisa alguma do que está a dizer, e nem sabe que não sabe porque não sabe o que é saber realmente de alguma coisa, em termos profissionais. Nas sociedades da privacidade a discussão pública é apenas conversa fiada de amadores e quem fala acaloradamente sobre algo não tem qualquer profissão relacionada com isso de que fala com tanta certeza.
Sendo verdade que os níveis de corrupção estão fortemente correlacionados com a sociedade da privacidade, precisamente por não se reconhecer outras fidelidades que não as privadas, é contudo significativo que não ocorra à generalidade dos críticos que grande parte dos problemas dos governantes, das empresas e das escolas não é a corrupção sofisticada mas a incompetência simples, geralmente baseada num conhecimento das coisas pela rama. O conceito de incompetência, contudo, só tem força em sociedades que prezem o profissionalismo. Nas sociedades da privacidade a incompetência é admitida como a condição natural de qualquer profissional e chama-se "desenrascanço".
Ironicamente, a entrega profissional a um trabalho é uma das condições necessárias para uma vida humana com sentido. 

Universidade Federal de Ouro Preto
Publicado no jornal Público (25 de Março de 2008)

sábado, 13 de novembro de 2010

A Educação contra a Barbárie - (Theodor W. Adorno; 1968)


Theodor Adorno

Adorno – A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida é saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente Impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade.

Becker — Quando formulamos a questão da barbárie de um modo tão amplo, então, é evidente, é muito fácil angariar apoio, porque obviamente todos serão de imediato contrários à barbárie. Mas se quisermos testar como a educação pode interferir nesse fenômeno ou agir profilaticamente para evitá-lo, parece-me necessário caracterizar com mais precisão o que é a barbárie e de onde ela surge. Neste caso precisamos indagar se uma pessoa em todos os sentidos compensada, temperada, esclarecida, livre de agressões e, portanto, não motivada à capacidade da agressão, constitui em si um produto almejável da sociedade.

Adorno — Eu começaria dizendo algo terrivelmente simples: que a tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade. A obviedade a que o senhor se referiu deixa de sê-lo quando observamos as concepções educacionais vigentes, sobretudo as existentes na Alemanha, em que são importantes concepções como aquela pela qual as pessoas devam assumir compromissos, ou que tenham que se adaptar ao sistema dominante, ou que devam se orientar conforme valores objetivamente válidos e dogmaticamente impostos. Pela minha visão da situação da educação alemã, o problema da desbarbarização não foi colocado com a nitidez e a gravidade com que pretendo abordá-lo aqui. Isto basta para colocar em discussão uma tal aparente obviedade.

Becker -—- Talvez por um momento fosse necessário não se restringir à Alemanha e perguntar se este problema não se coloca de um modo semelhante no mundo inteiro. Embora uma determinada forma da pedagogia de orientação idealista seja tipicamente alemã neste contexto, os perigos da barbarização, mesmo que em roupagens diferentes, também se colocam em outros países. Se quisermos combater este fenômeno por meio da educação, deverá ser decisivo remetê-lo a seus fatores psicológicos básicos...

Adorno — Não apenas aos psicológicos, mas também aos objetivos, que se encontram nos próprios sistemas sociais.

Becker — Eu concebo a psicologia também como um fator objetivo.

Adorno —— Sim, porém entendo como sendo fatores objetivos neste caso os momentos sociais que, independentemente da alma individual dos homens singulares, geram algo como a barbárie.
Neste momento estou mais inclinado a desenvolver essas questões na situação alemã. Não por pensar que não sejam igualmente agudas em outros lugares, mas porque de qualquer modo na Alemanha aconteceu a mais horrível explosão de barbárie de todos os tempos, e porque, afinal, conhecemos a situação alemã melhor a partir de nossa própria experiência viva.

Becker — Havendo consciência de se tratar de um fenômeno geral, podemos começar a partir do exemplo alemão. E como o senhor afirma com muita procedência, existem muitos motivos para tanto. Na questão "O que é possível á educação?" sempre nos defrontamos com o problema de até que ponto uma vontade consciente introduz fatos na educação que, por sua vez, provocam indiretamente a barbárie.

Adorno —-- Mas também o contrário. Quando o problema da barbárie é colocado com toda sua urgência e agudeza na educação, e justamente em instituições como a sua, que desempenha um papel-chave na estrutura educacional da Alemanha hoje, então me inclinaria a pensar que o simples fato de a questão da barbárie estar no centro da consciência provocaria por si uma mudança. Por outro lado, que existam elementos de barbárie, momentos repressivos e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que —-- e isto é Freud puro —- justamente esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura.

Becker —— Por outro lado, poderíamos dizer que se exagerarmos a ênfase à desbarbarização, então contribuímos para evitar a mudança da sociedade. Ajudamos eventualmente também a evitar um desenvolvimento em direção a "novas fronteiras", como se diz na América. Servimos, por assim dizer, à realização do lema "A calma é a obrigação primordial da cidadania"; e penso que o decisivo estaria em determinar o conteúdo preciso da desbarbarização em face de muitas exigências ingênuas de tolerância e de calma. Estou convencido que isto não significa para o senhor um desenvolvimento hostil a mudanças. Mas seria decisivo determinar com precisão o que a desbarbarização deva ser neste contexto.

Adorno — Concordo inteiramente com o senhor quanto a que o que imagino ser a desbarbarização não se encontra no plano de um elogio à moderação, uma restrição das afeições fortes, e nem mesmo nos termos da eliminação da agressão. Neste contexto parece-me permanecer totalmente procedente a proposição de Strindberg: "Como eu poderia amar o bem, se não odiasse o mal".
De resto, o conhecimento psicológico defendido como teoria justamente por Freud, com cujas reflexões acerca dessas questões ambos nos revelamos impressionados, encontra-se em concordância também com a possibilidade de sublimar de tal modo os chamados instintos de agressão, acerca dos quais inclusive ele manifestou concepções bastante diferentes durante sua vida, de maneira que justamente eles conduzam a tendências produtivas. Portanto, creio que na luta contra a barbárie ou em sua eliminação existe um momento de revolta que poderia ele próprio ser designado como bárbaro, se partíssemos de um conceito formal de humanidade. Mas já que todos nós nos encontramos no contexto de culpabilidade do próprio sistema, ninguém estará inteiramente livre de traços de barbárie, e tudo dependerá de orientar esses traços contra o princípio da barbárie, em vez de permitir seu curso em direção à desgraça.

Becker — Gostaria de colocar uma questão muito precisa: recentemente um político afirmou que os distúrbios de rua em Bremen por causa dos aumentos tarifários dos transportes seriam uma comprovação da falência da formação política, pois a juventude se manifestou por meio de formas bárbaras contra uma posição pública, acerca de cuja justeza poderia haver várias visões, mas que não poderia ser respondida mediante o que seriam confessadamente intervenções bárbaras.

Adorno — Considero esta afirmativa citada pelo senhor como sendo uma forma condenável de demagogia. Se existe algo que as manifestações dos secundaristas de Bremen demonstra, então é precisamente a conclusão de que a educação política não foi tão inútil como sempre se afirma; isto é, que essas pessoas não permitiram que lhes fosse retirada a espontaneidade, que não se converteram em obedientes instrumentos da ordem vigente. A forma de que a ameaçadora barbárie se reveste atualmente é a de, em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, praticarem-se precisamente atos que anunciam, conforme sua própria configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a essência mutilada da maioria das pessoas.

Becker — Contudo precisamos tentar imaginar a perspectiva em que se situam os jovens. Onde adquirem os critérios para decidir o que é bárbaro? Freqüentemente se distingue hoje em dia entre a violência contra os homens e a violência contra as coisas. Distingue-se entre a violência que é praticada, e aquela que é apenas ameaça: fala-se de ausência de violência em ações em si mesmas proibidas. Por assim dizer, desenvolve-se uma graduação da ausência efetiva e da ausência aparente de violência, e a partir deste padrão a questão da barbárie passa a ser avaliada por muitas pessoas. Se entendo bem, a barbárie parece ter um outro sentido para o senhor. A violência pode ser um sintoma da barbárie, mas não precisa necessariamente sê-lo. Na realidade, ao senhor interessa uma outra coisa, o que, na minha opinião, ainda não ficou claro.

Adorno — Bem, parece ser importante definir a barbárie, por mais que me desagrade. Suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista portanto a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie.

Becker — O senhor diria, se entendo bem, que, por exemplo, não é barbárie a demonstração de jovens ou adultos baseada em considerações racionais, ainda que rompa os limites da legalidade. Mas que é barbárie, por outro lado, a intervenção exagerada e objetivamente desnecessária da policia numa situação destas.

Adorno — Certamente penso assim. Se examinarmos mais de perto os acontecimentos que ocorrem atualmente na rebelião estudantil, então descobriremos que de modo algum se trata neste caso de erupções primitivas de violência, mas em geral de modos de agir politicamente refletidos. Se neste caso esta reflexão é correta ou equivocada, isto não precisa ser discutido agora. Mas não é verdade que se trata de uma consciência deformada, imediatamente agressiva. Os acontecimentos são entendidos, na pior das hipóteses, como estando a serviço da humanidade. Creio que, quando um time de fora que vence é ofendido e agredido num estádio, ou quando um grupo de presumíveis bons cidadãos agride estudantes ainda que só mediante palavras, podemos apreender de um modo radical, a partir desses exemplos tão atuais, a diferença entre o que é e o que não é barbárie.

Becker — Entretanto, em minha opinião as reflexões por si só não garantem um parâmetro frente à existência da barbárie. Enquanto dirigente governamental, por exemplo, posso me dispor ao uso de armas nucleares em algum lugar da Terra com base em considerações estritamente racionais, e este ato pode ser bárbaro, apesar do procedimento abrangente, controladíssimo, estritamente racionalizado e não subordinado a emoções graças à utilização de computadores. As reflexões e a racionalidade por si não constituem provas contra a barbárie.

Adorno — Mas eu não disse isto. Se me recordo — e sou um pai de família cuidadoso — me referi também em nossa discussão a reflexões sobre fins transparentes e humanos, e não a reflexões em abstrato. Pois, e nisto o senhor está coberto de razão, a reflexão pode servir tanto à dominação cega como ao seu oposto. As reflexões precisam portanto ser transparentes em sua finalidade humana. É necessário acrescentar estes considerandos.

Becker — Chegamos a uma questão muito difícil: como educar jovens para que efectivamente apliquem essas reflexões a objetivos humanos, ou seja, isto é factível para os jovens? Eu diria que pode muito bem ser possível, mas representa um rompimento com um conjunto de idéias que se tornaram muito simpáticas. Por exemplo, uma proposição básica da pedagogia recorrente na Alemanha, a de que a competição entre crianças deve ser prestigiada. Aparentemente aprende-se latim tão bem assim por causa da vontade de saber latim melhor do que o colega na carteira à nossa direita ou à nossa esquerda. A competição entre indivíduos e entre grupos, conscientemente promovida por muitos professores e em muitas escolas, é considerada no mundo inteiro e em sistemas políticos bem diversos como um princípio pedagógico particularmente saudável. Sou inclinado a afirmar — e me interessa saber sua opinião a respeito — que a competição, principalmente quando não balizada em formas muito flexíveis e que acabem rapidamente, representa em si um elemento de educação para a barbárie.

Adorno — Partilho inteiramente do ponto de vista segundo o qual a competição é um princípio no fundo contrário a uma educação humana. De resto, acredito também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição. Quando muito é possível educar desta maneira esportistas, mas não pessoas desbarbarizadas. Em minha própria época escolar, lembro que nas chamadas humanidades a competição não desempenhou papel algum. O importante era realizar aquilo que se tinha aprendido; por exemplo refletir acerca das debilidades do que a gente mesmo faz; ou as exigências que colocamos para nós mesmos ou à objetivação daquilo que imaginávamos; trabalhar no sentido de superar representações infantis e infantilismos dos mais diferentes tipos.
Abstraindo brincadeiras que transcorreram paralelamente, em minha própria formação não me lembro de que o chamado impulso agônico tenha desempenhado aquele papel decisivo que lhe é atribuído. Na situação escolar, esta é uma daquelas mitologias que continuam lotando nosso sistema educacional e que necessitam de uma análise científica séria.

Becker — Alegra-me muito o fato de o senhor ter freqüentado uma escola que lhe foi tão agradável, e alegra-me a nossa concordância tão profunda acerca da recusa das idéias exageradas de competitividade. Creio que tanto no seu tempo como hoje a massa dos professores continua considerando a competitividade como um instrumento central da educação e um instrumento para aumentar a eficiência. Eis um aspecto em que pode ser feito algo de fundamental em relação à desbarbarização.

Adorno — Isto é, desacostumar as pessoas de se darem cotoveladas. Cotoveladas constituem sem dúvida uma expressão da barbárie. No sistema educacional inglês — por menos que nos agrade o momento de conformismo que ele encerra, o objetivo de se tornar brilhante, o que de fato não é uma boa máxima, e que no fundo é hostil ao espírito — encontra-se na idéia de fair play momentos de uma consideração segundo a qual a motivação desregrada da competitividade encerra algo de desumano, e nesta medida há muito sentido em se aproveitar do ideal formativo inglês o ceticismo frente ao saudável desejo do sucesso.

Becker — Eu até iria mais além. Creio que erramos em insistir demasiado nesta idéia ainda hoje no esporte. Numa sociedade gradualmente liberada dos esforços físicos, em que a atividade física assume uma importante função lúdica e esportiva na escola que é muito mais importante do que jamais ocorreu na história da humanidade, ela poderia provocar conseqüências anímicas equivocadas por meio da competição. Neste sentido creio que um ponto decisivo consiste também em diminuir o peso das formas muito primitivas e marcadas da competitividade na educação física.

Adorno — Isto levaria a um predomínio do aspecto lúdico no esporte frente ao chamado desempenho máximo. Considero esta uma inflexão particularmente humana inclusive neste âmbito dos exercidos físicos, a qual, segundo penso, parece ser estritamente contrária às concepções vigentes no mundo.

Becker — Isto vale para todas as suas afirmações acerca da competição, pois evidentemente poder-se-ia defender a tese de que é preciso se preparar pela competição na escola para uma sociedade competitiva. Bem ao contrário, penso que o mais importante que a escola precisa fazer é dotar as pessoas de um modo de se relacionar com as coisas. E esta relação com as coisas é perturbada quando a competição é colocada no seu lugar. Nestes termos, creio que uma parte da desbarbarização possa ser alcançada mediante uma transformação da situação escolar numa tematização da relação com as coisas, uma tematização em que o fim da proclamação de valores tem uma função, assim como também a multiplicidade da oferta de coisas, possibilitando ao aluno uma seleção mais ampla e, nesta medida, uma melhor escolha de objetos, em vez da subordinação a objetos determinados preestabelecidos, os inevitáveis cânones educacionais.

Adorno — Talvez eu possa voltar mais uma vez a certas questões fundamentais na tentativa de uma desbarbarização mediante a educação. Freud fundamentou de um modo essencialmente psicológico a tendência à barbárie e, nesta medida, sem dúvida acertou na explicação de uma série de momentos, mostrando, por exemplo, que por intermédio da cultura as pessoas continuamente experimentam fracassos, desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que acabam se traduzindo em agressão. Tudo isto é muito procedente, tem uma ampla divulgação e poderia ser levado em conta pela educação na medida em que ela finalmente levar a sério as conclusões apontadas por Freud, em vez de substitui-las pela pseudo-profundidade de conhecimentos de terceira mão.
Mas no momento refiro-me a uma outra questão. Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacifica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir.
Bem, na medida em que tais nexos, como o da falência da cultura, a perpetuação socialmente impositiva da barbárie e este mecanismo de deslocamento que há pouco descrevi são levados de um modo abrangente à consciência das pessoas, seguramente não se poderá sem mais nem menos mudar esta situação, porém será possível gerar um clima que é incomparavelmente mais favorável a uma transformação do que o clima vigente ainda hoje na educação alemã. Esta questão central para mim é decisiva; é a isto que me retiro com a função do esclarecimento, e de maneira nenhuma à conversão de todos os homens em seres inofensivos e passivos. Ao contrário: esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente apenas urna forma da barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

Becker — Concordo inteiramente. Ainda mais quando eu temia nas suas exposições iniciais que a desbarbarização deveria começar, por assim dizer, com uma diminuição da agressão. O senhor já havia respondido com a citação de Strindberg. Mas penso que precisamos nos proteger de equívocos. Certamente o senhor conhece as propostas um pouco surpreendentes de Konrad Lorenz, que desenvolveu com suas exposições acerca da agressão o ponto de vista de que, se quisermos preservar a paz mundial, será necessário abrir novos campos às agressões dos homens. E nessas considerações cabe, por exemplo, o campo esportivo há pouco descrito pelo senhor ocupando o lugar da guerra a ser evitada. Acredito que — por mais interessantes e estimulantes que sejam as observações de Konrad Lorenz acerca das agressões entre os animais — a conclusão a que se chega nestes termos, ou seja, a recomendação de agressões de alívio, é muito perigosa.

Adorno — Ele conclui assim por razões de darwinismo social. Também a mim ele parece extraordinariamente perigoso, porque implica de uma certa maneira reduzir os homens ao estado de seres naturais.

Becker — Não creio que esta seja a opinião de Lorenz.

Adorno — Não, não é. Mas neste modo de pensar, como também no de Portmann, seguramente existem certas tendências desse tipo. Com a educação contra a barbárie no fundo não pretendo nada além de que o último adolescente do campo se envergonhe quando, por exemplo, agride um colega com rudeza ou se comporta de um modo brutal com uma moça; quero que por meio do sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à violência física.

Becker — Quanto à aversão eu seria cuidadoso

Adorno -—- Então pergunto se não existem situações em que sem violência não é possível. Eu diria que neste caso trata-se de uma sutileza. Mas creio que antes de falarmos sobre as exceções, sobre a dialética existente quando em certas circunstâncias a antibarbárie requer a barbárie, é preciso haver clareza de que até hoje ainda não despertou nas pessoas a vergonha acerca da rudeza existente no principio da cultura. E que somente quando formos exitosos no despertar desta vergonha, de maneira que qualquer pessoa se torne incapaz de tolerar brutalidades dos outros, só então será possível falar do resto.
Becker — Bem, a palavra "vergonha" é muito mais do meu agrado, do que a palavra anterior, "aversão". Existe uma literatura ampla a este respeito que — como é do seu conhecimento — conduz a luta contra a barbárie por meio de uma forma de descrição da barbárie que pode ser apreciada. E na aversão exagerada frente à barbárie pode haver elementos análogos. Nestes termos considero mais procedente a sua afirmação de que é preciso gerar uma vergonha. Além disto eu diria que a educação (e por isto o termo "esclarecimento" talvez ainda precise de esclarecimentos) nessas questões deveria se dar com as crianças ainda bem pequenas. É necessário que determinados desenvolvimentos ocorram num período etário — como diríamos hoje — da pré-escola, onde não se verificam apenas adequações sociais decisivas e definitivas, como sabemos hoje, mas também ocorrem adaptações decisivas das disposições anímicas. E é preciso reconhecer com bastante franqueza que em primeiro lugar sabemos pouco acerca de todo este processo de socialização, e também ainda temos pouco conhecimento cientificamente comprovado acerca de que ações têm quais efeitos nesta idade. No fundo, o importante é deixar as agressões se expressarem nesta idade, mas ao mesmo tempo iniciar a sua elaboração. Mas é isto precisamente que coloca as dificuldades maiores ao educador, deixando assim bem claro que no referente a esse problema a formação de educadores encontra-se engatinhando, se é que chegou a tanto.

Adorno — Corno alguém que pensa psicologicamente, isto parece-me ser quase uma obviedade. Isto deve-se a que a perpetuação da barbárie na educação é mediada essencialmente pelo princípio da autoridade, que se encontra nesta cultura ela própria. A tolerância frente às agressões, colocada com muita razão pelo senhor como pressuposto para que as agressões renunciem a seu caráter bárbaro, pressupõe por sua vez a renúncia ao comportamento autoritário e à formação de um superego rigoroso, estável e ao mesmo tempo exteriorizado. Por isto a dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na primeira infância, constitui um dos pressupostos mais importantes para uma desbarbarização. Mas eu seria o último a minimizar essas questões, pois os pais com que temos de lidar são, por sua vez, também produtos desta cultura e são tão bárbaros como o é esta cultura. O direito de punição continua sabidamente a ser, em terras alemãs, um recurso sagrado, de que as pessoas dificilmente abrem mão, tal como a pena de morte e outros dispositivos igualmente bárbaros.

Becker — Se concordamos acerca de como é decisiva a educação na primeira infância, então provavelmente também concordamos em relação a que a autoridade esclarecida, tal como o senhor a formula, não representa uma substituição da autoridade pelo esclarecimento, mas que neste âmbito e justamente na primeira infância precisa haver também manifestações de autoridade.

Adorno — Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio da violência, mas são conscientes, e, sobretudo, que tenham um momento de transparência inclusive para a própria criança; quando os pais "dão uma palmada" na criança porque ela arranca as asas de uma mosca, trata-se de um momento de autoridade que contribui para a desbarbarização.

Becker — Isto está inteiramente correto. Creio que concordamos quanto a que, nessa primeira infância e no sentido da desbarbarização, a criança não pode ser nem submetida autoritariamente à violência, nem submetida à insegurança total pelo fato de não se oferecer a ela nenhuma orientação.

Adorno ---- Contudo, creio que justamente as crianças que são anêmicas no sentido das concepções vigentes dos adultos e também dos pedagogos, as chamadas plantas de estufa, com as quais foi exitosa já precocemente como que uma sublimação da agressão, serão também como adultos ou como adolescentes aqueles que são relativamente imunes em face das agressões da barbárie. O importante é precisamente isto. Acredito ser importante para a educação que se supere este tabu acerca da diferenciação, da intelectualização, da espiritualidade, que vigora em nome do menino saudável e da menina espontânea, de modo que consigamos diferenciar e tornar tão delicadas as pessoas no processo educacional que elas sintam aquela vergonha acerca de cuja importância havíamos concordado.

Tradução: Wolfgang Leo Maar.

Fonte: A Educação contra a Barbárie - (Theodor W. Adorno; 1968)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Pensamentos...


"Quem não compreende um olhar também não compreenderá uma longa explicação."
 
(Provérbio árabe)

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sakineh Morrerá Hoje! Ajude a Divulgar!!

Direto do blog Los in Japan, do amigo Alexandre.

Inaceitável que a violência contra a mulher continue. Não é possível haver gente neste mundo que considere correto matar uma mulher por um "erro" cometido.
Chega de violência contra à mulher!



Texto via "Banzai", o blog da minha querida amiga Margarida, lá de Portugal 
Vamos divulgar! 
SAKINEH MOHAMMADI - ASHTIANI - PARA TODAS AS BLOGUEIRAS E BLOGUEIROS!


Lembram-se da SAKINEH?


Aposto que sim. Vi este rosto em muitos blogues, assinaram-se petições para evitar que esta Iraniana, acusada de adultério, fosse barbaramente condenada á morte por apedrejamento. Aparentemente os carrascos cederam. Falou-se até numa possível libertação. O caso Sakineh deixou de ser lembrado e comentado. Afinal de contas são tantas as causas a que temos que responder, e o Irão fica tão longe...Pensámos que tínhamos ganho uma vitória contra a barbárie. Mas os bárbaros estavam apenas á espera que a opinião pública internacional se cansasse, se calasse.

Depois, calmamente calaram as vozes internas mais preocupantes. O filho e o advogado de Sakineh foram presos a 10 de Outubro. Desde 11 de Agosto que as visitas foram proibidas, e o regime fabricou, na sombra, um novo cenário, anunciando que "de acordo com as evidências existentes, a sua culpa (de Sakineh) foi confirmada". Culpa? Que culpa é essa, que a fez ser punida com 99 chicotadas? Que culpa pode condenar alguém a uma morte cruel, desumana, atroz? Que culpa lhe atribuem para não a apedrejando, ainda assim a enforcar?

Foi contra isso que nos manifestámos, esquecendo que devíamos ter ido até ao fim pressionando, exijindo que a libertassem.


Hoje, fui alertada. Procurei na net. Está aqui, e aqui, em vários sites. Foi dada ordem para a execução de Sakineh, por enforcamento. A data indicada é amanhã, 3 de Novembro.

Temos 24 horas para usar os nossos blogues, as nossas vozes, para mostrar que não esquecemos Sakineh, que estamos atentos e que denunciamos não só a barbárie mas também a injustiça.

Sei que posso contar convosco!!!!!!!!!!!


sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O absurdo do absurdo... que país é esse?

Conselho Nacional de Educação quer proibir livro de Lobato

O motivo seria o uso de termos considerados racistas usados pelo escritor Monteiro Lobato em Caçadas de Pedrinho.

Por Cristiane Rogerio

 Shutterstock
Ilustração de Fabiana Salomão para o livro Peter Pan, de Monteiro Lobato,
em edição da GloboLivros, e que faz parte dos 30 Melhores Livros Infantis 
do Ano de CRESCER

Um parecer do Conselho Nacional de Educação surpreendeu os leitores de Monteiro Lobato. O jornal Folha de S. Paulo divulgou hoje que o CNE quer vetar a utilização do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, na rede pública de ensino, por considerar que contém mensagens racistas. A orientação aguarda agora a homologação ou não do ministro da educação Fernando Haddad, o que, segundo sua assessoria, não tem prazo para acontecer.

“Negra de estimação”. É assim que Monteiro Lobato apresenta ao mundo Tia Nastácia, a senhora que mora no Sítio do Picapau Amarelo, responsável pelos quitutes mais incríveis e apetitosos e por tantas histórias do folclore brasileiro que povoam o imaginário daquela família e de todos os leitores de Lobato. Por toda a obra, ela é citada como “preta” ou termos do tipo e, no livro Caçadas, o trecho: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão” é o que mais incomoda o Conselho,de acordo com documento elaborado por causa de uma denúncia recebida na Secretaria de Promoção de Igualdade Racial.

Para a socióloga Lourdes Atié, socióloga, consultora e coordenadora pedagógica do Prêmio VivaLeitura, a resolução é mais uma atitude pelo politicamente correto. “É a mesma discussão com os que querem alterar a cantiga Atirei o Pau no Gato ou mudar o final da história de Chapeuzinho Vermelho. Ignoram que os textos de Lobato pertencem a um contexto histórico e devem ser valorizados por representarem a cultura brasileira. Lobato é nosso patrimônio, faz parte das nossas raízes”, afirma. Maria José Nóbrega, coordenadora do curso de pós-graduação em língua portuguesa do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, chama atenção não para as palavras usadas pelo escritor, mas do jeito que tanto Tia Nastácia como também Tio Barnabé eram tratados pelos moradores do Sítio. “São afetuosos e, acima de tudo, escutados. Isso é o que sempre mais me impressionou na obra: há uma interlocução, o negro tem voz e até mais do que hoje em tantas famílias. Podemos não mais chamar de “preto” ou “negro”, mas em muitos locais eles não são sequer escutados”, afirma. Márcia Camargos, que é escritora com pós-doutorado em história pela USP e especialista em Monteiro Lobato, concorda. “É negar o caráter educativo e pioneiro das histórias que trouxeram como uma das protagonistas Tia Nastácia, detentora do saber popular que aparece com destaque e voz própria ao longo das aventuras”, diz a consultora da GloboLivros, que atualmente publica toda a obra do escritor .

A preocupação com obras que incitem o preconceito pode até ser legítima em alguns casos, mas precisa de avaliação. Se o intuito for discutir os termos usados pelo autor, que praticamente criou a literatura infantil brasileira, isto pode acontecer com o texto em mãos. “Jamais uma obra como esta, um clássico, poderia ser proibida em qualquer lugar. Temos que continuar lendo Lobato, sempre. É possível, sim, ter uma boa conversa sobre o assunto, e assim estimular o senso crítico da criança em relação a um texto. Em vez de vir com moralismo, sugira novos pontos de vista. Que tal ler e conversar com a criança, fazendo perguntas como: por que será que eles se referiam com essas palavras a pessoas negras? Se fosse você, como falaria? Se ouvisse alguém falando assim com um amigo, como reagiria? E nunca deixar de valorizar toda a riqueza que as histórias de Lobato trazem a qualquer tipo de leitor”.

Para Márcia Camargos, ao contrário do que o CNE indica com esta ação, os professores não são incapazes nem despreparados para lidar com situações deste tipo. “Eles têm bom senso e critérios de julgamento para elaborar as informações, sendo que provavelmente cresceram lendo ou assistindo às aventuras do Sítio do Picapau Amarelo. Os alunos tampouco consistem em receptáculos sem autonomia nem valores. Aliás, Lobato defendia que a criança é dotada de inteligência e discernimento. Infantilizá-la, varrendo para debaixo do tapete temas polêmicos, é desprezar sua capacidade de escolha e minar o desenvolvimento do seu espírito crítico”, diz.


sábado, 23 de outubro de 2010

Eleições e democracia - Revista Nova Escola

Eleições, urna eletrônica. Foto: Pedro Rubens

É sempre bom ampliar a discussão sobre democracia dentro e fora da escola. Pensando nisso, preparamos uma seleção de reportagens, artigos e planos de aula sobre o tema. Mostre aos alunos como chegamos à configuração política atual e debata com eles a importância do voto. Veja, também, quais são as atribuições de cada governante em relação à Educação. Boa leitura!

      
  1. Democracia no Brasil  
               
Em época de eleições, vale a pena lembrar como o Brasil chegou ao voto direto e universal. Acompanhe com a turma os fatos marcantes da História do país por meio das reportagens e planos de aula abaixo.
Uma visão crítica da proclamação da República
Reportagem de História sobre a Proclamação da República permite debater a ausência de participação popular no Brasil da época

Quando começaram as propagandas políticas no Brasil?
Reportagem mostra que a primeira campanha política brasileira foi o Manifesto Republicano, lançado em 3 de dezembro de 1870, no jornal A República, do Rio de Janeiro.

O que foi a revolução constitucionalista de 1932?
Reportagem sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo.

O que é um golpe de Estado?
Reportagem explica o que é um golpe de Estado
A morte de Vladimir Herzog e as mobilizações contra a ditadura
Reportagem sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog, que mobilizou a sociedade contra os militares durante a ditadura.
A eleição de Tancredo Neves e o fim da ditadura militar
Reportagem sobre a eleição de Tancredo Neves à Presidência da República, em 1985, mostra aos alunos como a batalha política para retomar o regime democrático exigiu não apenas habilidade nas negociações, mas muita mobilização popular e alguns sacrifícios pessoais.

Siga com a turma a trajetória da democracia latino-americana
Plano de aula para Ensino Médio estimula a pesquisa sobre os regimes políticos nos países latinos.

Como funciona uma CPI? Quais foram as mais importantes?
Reportagem sobre como é instaurada e encaminhada uma CPI, Comissão Parlamentar de Inquérito.

  2. Democracia na escola 

  • Sala de aula
  • Gestão Escolar
Leia na reportagem e nos planos de aula como discutir com a turma o conceito de democracia e a importância do voto dentro e fora da escola
Ensino Fundamental
Jovens cidadãos elegem seus representantes escolares
Reportagem mostra que, antes das eleições para conselho e grêmios escolares, os estudantes de 4º e 5º ano devem estudar sistemas de governo e direitos políticos.


Eleição do representante da turma
Projeto didático para desenvolver noções de cidadania, participação política e controle social, por meio da eleição de um representante da turma

Ensino Médio
Convide a classe a conhecer a epopeia das eleições no país
Plano de aula convida a turma a avaliar o processo eleitoral no Brasil ao longo dos anos e a refletir sobre questões como voto, propaganda política, programas de governo e fraudes eleitorais.

A evolução do sistema eleitoral brasileiro
Plano de aula de História para Ensino Médio aproveita infográfico sobre a evolução das cédulas eleitorais brasileiras para discutir os avanços no processo eleitoral

Democracia e eleições
Plano de aula de Sociologia para Ensino Médio sobre os conceitos de democracia e a aplicação deles nas eleições

Regras do jogo eleitoral
Plano de aula de Sociologia e História para Ensino Médio sobre campanhas eleitorais no Brasil.

  3. Educação e política 
Saiba quais são as atribuições de cada esfera de governo e veja como acompanhar e cobrar melhorias no ensino.
A importância de eleger bons senadores e deputados
Artigo de Juca Gil, professor de Políticas Educacionais da UFRGS, sobre o papel de senadores e deputados na definição de leis educacionais.

Congressistas não dedicam esforços para melhorar o currículo escolar
Reportagem sobre projetos apresentados por deputados e senadores na área da Educação.

Por que acompanhar de perto o novo PNE
Reportagem sobre como o PNE, que vai reger a Educação nacional nos próximos dez anos, pode mudar a rotina das escolas.

As leis e a autonomia das escolas
Artigo de Juca Gil mostra como a autonomia de estados e municípios faz com que haja grande diversidade no funcionamento do ensino.

Os planos educacionais brasileiros
Artigo de Juca Gil sobre os planos de Educação no Brasil, mostrando que eles só se tornam realidade quando contam com o apoio coletivo dos envolvidos.

O que não está na legislação educacional
Artigo de Juca Gil sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação explica que conhecer o que não consta nas leis pode ser tão importante do que está nelas.

As regras do jogo
Artigo de Juca Gil sobre a importância das leis e o relacionamento dos cidadãos com elas.

Fonte: Revista Nova Escola

sábado, 2 de outubro de 2010

Carta aos Candidatos, por Gilberto Blume

Caros candidatos e candidatas,

venho por meio desta pedir, humilde, mas encarecidamente, que os senhores e as senhoras reflitam mais um pouco sobre a responsabilidade que assumiram ao colocar seus nomes a nosso serviço. Não peço, contudo, a reflexão óbvia. Essa, por certo, já foi feita, senão os senhores e as senhoras não teriam se candidatado.

Peço a reflexão verdadeira, aquela que não aconteceu antes da campanha.

Vocês, candidatos e candidatas, estão de fato cientes das promessas que lançaram ao longo da campanha? Essas promessas, saibam, farão com que milhões de cidadãos depositem a confiança em vocês. Se de fato estão cientes das próprias promessas, também devem estar cientes de que substancial parte dessas promessas os senhores e as senhoras não vão cumprir. Não tentem negar: grande parte das promessas não será cumprida, admitam.

Fosse feita antes, a reflexão verdadeira sobre suas responsabilidades teria resultado numa campanha menos espetaculosa e milagreira. Mais real, pois. Fosse essa reflexão verdadeira feita antes, talvez muitos dos senhores e das senhoras sequer teriam lançado candidatura. Talvez (juro que ainda creio nisso) muitos de vocês teriam se negado a participar desse jogo. Agora é tarde. Os senhores e as senhoras prometeram muito, e muitos de vocês serão eleitos por causa disso. Pelo visto, seus objetivos foram atingidos. Mas, e os objetivos de quem votou nos senhores e nas senhoras por causa das promessas, quando serão atingidos? E os objetivos de que não caiu no conto do vigário da promessa, como ficam?

Por fim, candidatos e candidatas, peço, também humilde mas encarecidamente, que vocês se ponham por alguns instantes em nossos lugares. Proponho esse exercício com o construtivo intuito de ajudar a fazê-los compreender a verdadeira extensão da responsabilidade que vocês assumiram conosco.

Vocês sabem quem nós somos?

Vocês sabem o que precisamos?

Vocês sabem do que não precisamos?

Sabem mesmo?

Têm certeza de que sabem?

Nós, cidadãos, sabemos muito bem quem são vocês, senhores e senhoras.

Tenham absoluta certeza disso.


Gilberto Blume 
Jornal Pioneiro - Caxias do Sul - RS.



Fonte: Jornal Pioneiro - Caxias do Sul - RS

domingo, 19 de setembro de 2010

O homem que (re)inventou o gaúcho

  
Para marcar as comemorações do 20 de Setembro, o Segundo expõe as fortes opiniões do folclorista e compositor Paixão Côrtes, conhecido como criador e ícone de uma das manifestações culturais mais controversas do país: o movimento tradicionalista.

Segundo O Nacional:

No último 20 de setembro, o Segundo colocou opiniões diferentes frente a frente, em uma peleia histórica: polêmicos em suas colocações, os historiadores Paulo Monteiro e Luis Tau Golin fizeram um verdadeiro panorama da história do tradicionalismo, seja para o bem ou para o mal. Nesse dia, um nome se destacou: João Carlos D'Ávila Paixão Côrtes, o folclorista que se tornou conhecido como uma espécie de "inventor" do gaúcho popularizado em todo estado por volta dos anos 1950.
Por isso, este ano trazemos as palavras do próprio, a partir de entrevista cedida especialmente ao jornal O Nacional pela UPFTV. Falando de suas origens na Fronteira, dos costumes de homem do campo mantidos até hoje, das discussões em torno dos avanços da sociedade em contraste com a rigidez das tradições e a forma como encara aqueles que não compactuam com sua visão, o compositor, radialista e pesquisador nascido em 1927 divide com o público um pouco do conhecimento adquirido ao longo de meio século, e que lhe rendeu mais de 50 obras e prestígio no país inteiro, onde é visto como uma espécie de lenda viva da cultura sul-rio-grandense.

O início na Fronteira: grosso, sim, com orgulho


"Na realidade eu sou um produto atávico com relação às coisas do Rio Grande, pois minha mãe tocava vários instrumentos, e o tronco dos Ávila, todos eles tocam ou cantam. Eu canto um pouquinho por necessidade, mas eu danço. Eu só tinha uma irmã, mais jovem do que eu, que já faleceu, mas a relação de amizade com meus ancestrais tanto por parte de Santana quanto de Bagé, sempre estiveram ligados à vida rural, sou produto da vida rural, não sou urbano, sou grosso do campo."

A herança do campo: "se o povo não conhece suas origens..."

"Minha herança é rural, meus avós eram ligados ao campo, me criei nas estâncias. E isso me fez despertar, com orientação dos meus pais, para a importância que representava a revitalização de conhecimento das origens, e isso de uma forma simples, ingênua e pura da cultura do povo. Se o povo não conhece as suas origens, não pode avaliar com a devida grandiosidade as manifestações de outros povos, por isso não basta ficar no galpão, é preciso sair do galpão para encontrar na sociedade moderna aspectos que consolidem as heranças que nós temos e projetá-las no sentido universal, porque só existe importância na nossa maneira de ser se outros povos nos entenderem. Se eles nos entenderem como somos, nós também teremos a obrigação de entendê-los, e é isso que traz a fraternidade universal."

O dia a dia de um tradicionalista

"Eu não tomo café, tomo mate de manhã cedo. Tenho uma vida normal, minha atividade ligada ao meio rural como agrônomo sempre me levou à convivência mais próxima com o homem rural. A sapiência, o conhecimento, a importância de ser, que eles às vezes também não sabiam que eram as heranças espontâneas, eu procurei colocá-las no devido lugar, e faço até hoje. Uma contribuição a fim de que a cultura popular mereça um questionamento ao lado das outras manifestações universais e importantes da ciência, da literatura e das artes.

O Grupo dos Oito: o estado precisava se reagauchar

"Nós chegamos a Porto Alegre, eu era jovem ainda, com 14 anos, e verificamos que todo aquele meio espontâneo do interior estava ausente na capital. Os grandes meios urbanos estavam sumamente influenciados pelo pós-guerra, em especial a influência norte-americana no falar, nos discos, nos livros, nos jornais, nas comidas, tudo era produto dos vencedores da Segunda Guerra. Então achei que o Rio Grande precisava se reagauchar, procurar suas raízes, sua essência profunda, para dizer: nós também temos direito de mostrar nossas coisas. Então formamos o Grupo dos Oito, lá no Colégio Júlio de Castilho, ou seja, isso começou numa escola, e depois passamos para entidade social fora do colégio, e aí se expandiu o movimento progressivamente. Veio debaixo pra cima, não foi de cima pra baixo. Hoje são 4 mil entidades pelo mundo, e giram em torno disso 5 milhões de pessoas. Deixou de ser galponeiro para se tornar universal, e acho que esta é a missão do movimento da cultura sul-rio-grandense."

No tempo em que homem de bombachas acabava na prisão

"Nós não tínhamos o direito de tomar mate numa praça porque era ofensivo à sociedade da elite porto-alegrense vestir-se de bota e bombachas, isso era motivo de prisão. A polícia pegava por atentado aos princípios da alta sociedade. Inclusive eu, me prenderam certa vez. Encarávamos isso como absurdo, pois era uma herança dos nossos antepassados que deveria ser respeitada, um símbolo de momentos de glória, de decisão."

Tradição x evolução: uma batalha legítima

"Temos que procurar analisar isso no contexto da história. O movimento gaúcho tem que acompanhar a modernidade, não pode ficar preso, mas também não pode fazer modismo. Precisa pegar as raízes da nossa tradição e colocar ao lado de outras manifestações. É preciso que a nova geração, aquela que vai formar a nossa sociedade, mantenha isso."

Para aqueles que não concordam (e aos que fantasiam)

"É preocupante, porque isso é uma inconsciência. Estive várias vezes na Europa e vi lá o povo fazendo a revitalização de suas fontes originais, de poder, de trabalho, de reconstituição de vida, e de cultura também. Isso se obtém quando se tem um alicerce forte, duradouro e consciente. Então tem muita gente fazendo modismo com o tradicionalismo, criando fantasias, alterando costumes, me preocupo com a documentação e a verdade através da pesquisa. Não basta fantasiar-se de gaúcho, quando não sabe nem mesmo a origem dessa palavra."

Contra os falsos gaúchos?

"Esse é um movimento muito jovem, tem apenas 60 anos, dentro do aspecto sociológico, as transições se sucedem. E a sequência dos participantes nem sempre está à altura das resoluções do conhecimento. Então é necessário não fazer só gauchada nem concursos. É preciso saber muito de nossas origens, até mesmo para avaliar esses concursos. Eu acho que a postura da pessoa é condizente com a atitude que ela toma, então não me obrigue a botar bota, bombachas e lenço no pescoço, ou tomar chimarrão e comer churrasco. Essa é uma condição minha, natural, espontânea, e não uma obrigação para justificar alguma coisa."

Imagem: Aqui

sábado, 4 de setembro de 2010

A ação e sua prostituição, por Márcia Tiburi


Marcia Tiburi: A atualidade da Lei de Gerson e o futebol como pedagogia política

Que 2010 seja ano de eleição é questão que põe em cena o devir publicitário da esfera pública. A publicidade é uma desapropriação da política. Se a política é ação, Antonin Artaud disse que a propaganda era a sua prostituição. A publicidade, como totalidade da vida transformada em propaganda, tornou-se a razão geral da esfera pública suplantando o sentido do que antes chamaríamos o político, o universo das relações humanas em que decisões sobre o poder estão em jogo. Daí que o ético, como decisão, esteja sempre relacionado ao político, mesmo que por eliminação. Usemos as expressões o político e a política para tratar dessa diferença de intenções com a esfera pública. Falemos d’a política como profissionalização ou cartelização d’o político. O político, como esfera, seria o espaço de exercício da cidadania individual e coletiva, não o mero exercício do poder no contexto partidário, ou no do crime ao qual se reduz a ação pela corrupção. Nem seria a simples economia independente de um projeto democrático.
E 2010 é também ano de Copa do Mundo. No entanto, mesmo sendo o futebol um excelente negócio também para a publicidade, não podemos dizer que a Copa seja mais questão de publicidade do que de futebol propriamente dito. O futebol parece importar mais para a esfera pública do que o político. Se a política é a quebra do político, o futebol parece se manter ileso em seu sentido. Talvez ele seja reduto da verdadeira experiência do político que foi danificada na política. Nesse sentido, seria possível pensar o futebol do ponto de vista de sua potência pedagógico-política em um país como o nosso? Mas o que será que a política e o político teriam a aprender com o futebol? E o que a publicidade teria a ver com isso?

Terra de ninguém

A sustentação do espaço político como espaço de convivência de diferenças à luz dos direitos dos seres humanos é algo que apenas pode acontecer se tivermos consciência teórica e prática da separação entre o político e o publicitário. Em sua lógica total, a publicidade constitui o mais novo e sutil totalitarismo caracterizado pelo controle do desejo e dos pensamentos, das relações entre indivíduos e instituições com base em ideias ou imagens preestabelecidas transmitidas a massas tratadas – de antemão – como ignorantes. Elas estão para a publicidade como a torcida para o futebol, assim como o povo está para o político. A diferença é que torcida e povo têm um desejo maior do que aquilo que simplesmente lhes é dado. São ativos e não passivos. Claro que para que as massas se tornem conscientes não bastaria extirpar a publicidade da esfera pública, sob pena de incorrer no totalitarismo oposto. É preciso formular a relação entre os dois modos de construir a esfera pública em um sentido dialético, ou seja, da tensão produtiva, mais do que de uma mera dependência inexorável entre publicitário e político.
A ideia de que este é o país do futebol, no sentido da força simbólica que o jogo tem em nossa cultura, pode ajudar a pensar a definição entre nós da ética como sendo um jogo que falta à política, tanto quanto à cultura. Um jogo de futebol é um excelente retrato da ética que podemos aprender, pois ele envolve a responsabilidade de sustentar as regras dos nossos próprios jogos. Ao faltar a ética, não temos mais o político, só a política como terra de ninguém. O campo nunca é essa terra de ninguém e ele tem um guardião que também está na mira do julgamento. Trata-se do juiz que, no jogo de futebol, é o responsável por fazer valer as regras. Faltas em uma partida sinalizam não apenas uma penalização, mas o limite da ação que todos devem respeitar. Cartões amarelos ou vermelhos são ícones claros de ações indesejadas. Na política as coisas são diferentes. Faltas políticas, como propaganda fora da época permitida, são punidas com multas inócuas diante dos lucros político-publicitários que promovem. O problema nem seria o lucro, objetivo claro do jogo do capitalismo. Mas o fato de que a publicidade, ordenando o comportamento dos partidos, ao apostar contra a lei, torna-se, ela mesma, soberana sobre as regras. Torna-se, na prática, a dona da regra.

O que a publicidade ganha não é apenas a manutenção da corrida por votos, mas instaura um espaço de exceção que vale na permissão sustentada pelas multas, e, no nível cotidiano, cria o imperativo antipolítico, de uma atitude que pode ser aceita e somente pode sê-lo em uma sociedade carente de sentido ético e moral. No futebol, no entanto, as regras são tão sagradas que o juiz se torna um “ladrão” odiado, caso desrespeite o estrito regulamento do jogo. O motivo é básico. O abuso de poder contra as regras, que caracterizaria a violência soberana do juiz, acabaria com o jogo. Do mesmo modo, o publicitário, pondo-se no lugar de um juiz que não é julgado, acaba com a política. Assim, o jogo de futebol tem uma ética baseada em regras, a publicidade não. Um juiz ladrão é punido com violência física ou verbal por interromper a lógica do acordo prévio sobre as regras e acabar com a graça do jogo. O publicitário, nesse sentido, é uma espécie de ladrão que tenta ser juiz. Pois legisla contra regras que são maiores que o jogo no qual ele faz as próprias regras.

A inverdade da Lei de Gerson

O caráter pedagógico-político do futebol pode sempre ser minado pela publicidade. Lembremos do episódio envolvendo Gerson, jogador de futebol nos anos 1970 e herói da propaganda de cigarros Vila Rica. Num ato publicitário, promulgou-se socialmente uma “lei” que leva seu nome. “O importante é levar vantagem” tornou-se a fórmula da “Lei de Gerson” que, no Brasil, veio a ser mais famosa do que a Lei de Talião. Deveria ser chamada, com mais propriedade, de “lei do publicitário”. É a lei do autofavorecimento em que cada um se autoriza a ser juiz, mas sob a forma de ladrão. A política, tal como a conhecemos, já tinha sido inventada no Brasil da ditadura, mas era o futebol, mesmo que como desejável ópio do povo, que garantia alguma esperança no espaço d’o político. O estrago n’o político causado por esse enunciado publicitário não perde para o estrago que a ditadura causou entre nós. A Lei de Gerson é o imperativo da ausência de lei, a anomia que, curiosamente, surgiu no período da ditadura como lei total.

Contraditoriamente, ainda que tenha nascido na imagem usada publicitariamente de um jogador de futebol, tal imperativo venenoso não tem nada a ver com futebol. Esporte de equipe, o futebol depende da sinergia do grupo para o bom desenvolvimento da partida. E isso faz pensar que, se este é o país do futebol, necessariamente não deveria ser o país da Lei de Gerson. O chamado futebol-arte dos brasileiros teria “jeitinho” apenas como performance estética, como “jogo de cintura” que não tem nada a ver com “levar vantagem”. Se aqui todo mundo é jogador ou torcedor, juiz, gandula, empresário do futebol, olheiro, locutor de jogos, comentarista ou, mesmo sem querer, participa de algum modo da lógica do jogo, no mínimo, por conhecer alguém ou algo envolvido no “campo”, deveríamos antes de mais nada pensar na questão do espírito de equipe que guarda o sentido do poder e d’o político como ação conjunta.

Assim como o futebol, a política tem dimensão metafísica e estética, mas, como sua base é empobrecida pela corrupção, ela dá a sensação de um dilaceramento da experiência, de coisa falsa. O futebol, ao contrário da política, nos passa uma ideia de experiência verdadeira. E não seria apenas porque o futebol parece mais “oceânico” do que a política. O futebol completa a experiência metafísica e estética com uma dimensão política, a da equipe. Mas a prova fundamental de que o futebol é político se dá justamente pela experiência com a publicidade que, na política tradicional, é sinal de sua derrocada. Fato é que, se podemos inventar um político pela publicidade – pelo uso da imagem e do discurso em sentido retórico –, não podemos, no entanto, inventar um jogador. Podemos até inventar a falsa “Lei de Gerson”, mas não um craque. O jogador de futebol sempre terá de mostrar o que promete diante de sua torcida, que é bem mais complexa que a mera massa manipulada pela publicidade. Seu discurso, sua beleza corporal, seu carisma, seus carros incríveis ou suas roupas de marca, nada disso conta quando ele entra em campo vestido apenas com a camisa do seu time, igualzinha à de seus colegas. O campo de futebol torna-se assim o único cenário da exposição da verdade de que ainda somos capazes. E isso devia nos mostrar um significado maior.

Fonte: Revista Cult
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