sábado, 29 de agosto de 2009

Queremos dividir o Brasil?

"Não", é a resposta que resulta da leitura de Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli, um livro ambicioso que investiga as origens ideológicas das cotas raciais.

Diogo Schelp

VEJA TAMBÉM



"Cada homem é uma raça." A frase, título de um livro do escritor moçambicano Mia Couto, sintetiza a ideia de que cada indivíduo tem sua história, seu repertório cultural, seus desejos, suas preferências pessoais e, é claro, uma aparência física própria que, no conjunto, fazem dele um ser único. Rótulos raciais são, portanto, arbitrários e injustos. Mia Couto, com sua concepção universalista da humanidade, é citado algumas vezes em Uma Gota de Sangue – História do Pensamento Racial (Contexto; 400 páginas; 49,90 reais), do sociólogo paulistano Demétrio Magnoli, recém-chegado às livrarias. Trata-se de uma dessas obras ambiciosas, raras no Brasil, que partem de um esforço de pesquisa histórica monumental para elucidar um tema da atualidade. Magnoli estava intrigado com o avanço das cotas para negros no Brasil e resolveu investigar a raiz dessas medidas afirmativas. O resultado é uma análise meticulosa da evolução do conceito racial no mundo. Descobre-se em Uma Gota de Sangue que as atuais políticas de cotas derivam dos mesmos pressupostos clássicos sobre raça que embasaram, num passado não tão distante, a segregação oficial de negros e outros grupos. A diferença é que, agora, esse velho pensamento assume o nome de multiculturalismo – a ideia de que uma nação é uma colcha de retalhos de etnias que formam um conjunto, mas não se misturam. É o racismo com nova pele.

Em todos os povos ou períodos da história, a sensação de pertencimento a uma comunidade sempre foi construída com base nas diferenças em relação aos que estão de fora, "os outros". Muitas tribos indígenas brasileiras, por exemplo, chamam a si próprias de "homens" ou "gente" e denominam pejorativamente integrantes de outros grupamentos – esses são "seres inferiores" ou "narizes chatos". O filósofo gregoAristóteles considerava a "raça helênica" superior aos outros povos. Mas até o Iluminismo, no século XVIII, a humanidade não recorreu a teses raciais para justificar a escravidão – tratava-se de uma decorrência natural de conquistas militares. A postulação de que todos os homens nascem livres e iguais criou, porém, uma reação: a fim de embasar o domínio de povos europeus seus descendentes sobre as populações colonizadas ou escravizadas, começou-se a elaborar uma divisão sistemática de raças, com pretensões científicas.

No século XIX, esse pensamento atingiu seu ápice, com a apropriação das teses darwinistas de seleção natural. Os teóricos do racismo científico trataram de estabelecer hierarquias entre os grupos humanos com base em fundamentos biológicos. Com a gradual abolição da escravidão, o racismo científico foi usado para justificar o imperialismo ocidental na África e na Ásia.

Magnoli descreve como duas visões de mundo opostas estiveram em constante tensão ao longo da história mundial recente. A primeira crê numa espécie humana dividida em raças que se distinguem por ancestralidades diferentes, expressas em traços físicos e culturais. Os arautos dessa ideia podem ser chamados, genericamente, de racialistas. A segunda visão, antirracialista, nega a separação da humanidade em categorias inventadas e acredita no princípio da igualdade entre as pessoas. Representam a linha de pensamento antirracialista personalidades como o líder sul-africano Nelson Mandela e os americanos Frederick Douglas, abolicionista do século XIX, e Martin Luther King, líder do movimento em defesa dos direitos civis. Entre os racialistas, figuram o presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, o ditador alemão Adolf Hitler e o ativista negro americano Malcolm X. O exemplo do regime de Hitler na Alemanha não aparece no livro para tentar provar a tese de que todo pensamento racialista leva ao genocídio, o que obviamente não é verdade, mas para demonstrar o extremo a que se pode chegar quando o estado impõe critérios de raça. A crença de Theodore Roosevelt e outros governantes na supremacia dos brancos sobre os negros não levou a uma política de extermínio, como ocorreu na Alemanha. Para Magnoli, a explicação está nas diferenças fundamentais entre o racismo nazista e aquele predominante em outros países. A principal delas é que, na Alemanha, o racismo combinou-se a um nacionalismo extremado e ao ódio obsessivo em relação aos judeus. Esse contexto levou à busca pela "solução final" – a expulsão em massa seguida da eliminação física dos judeus.


Manpreet Romana/AFP

LUTA DE CASTAS
Polícia reprime protesto de gujares, na Índia, em junho de 2008. O grupo étnico pediu para ser rebaixado no sistema de castas para ganhar cotas no serviço público.

Em sua origem, a tese da purificação racial adotada pelos nazistas foi influenciada pelo movimento eugenista americano, que teve seu auge nas primeiras décadas do século XX. Os eugenistas defendiam o melhoramento genético da população por meio de políticas que impedissem indivíduos considerados inferiores de se reproduzir. Tais medidas, por sua vez, só podiam ser tomadas com a classificação sistemática da população segundo critérios hereditários, entre os quais a raça. Atualmente, com o conhecimento que se tem do DNA humano, a tese de que a humanidade pode ser dividida em raças foi relegada ao ridículo. "O ser humano tem 25.000 genes, dos quais não mais de trinta definem a cor da pele e dos olhos, o formato do rosto, o tamanho do nariz e a textura do cabelo, entre outras características morfológicas", explica o geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. Ou seja, na imensidão do genoma humano, os aspectos físicos geralmente usados para classificar as raças não representam nada. Do ponto de vista genético, pode haver mais diferenças entre dois africanos do que entre um deles e um europeu nórdico.

O fato de a ciência concluir que as raças não existem como conceito biológico cria uma dificuldade para os defensores da discriminação reversa (o outro nome para as cotas): inviabiliza a tentativa de usar critérios objetivos para decidir quem pode ou não ser beneficiário de privilégios no vestibular, no mercado de trabalho ou em licitações públicas. Essa dificuldade, aliás, sempre existiu nos países que legislaram com base em raça, mesmo quando esse conceito ainda era considerado uma verdade científica. Nos Estados Unidos, por exemplo, criou-se a regra da gota única de sangue – daí o título do livro de Magnoli –, segundo a qual qualquer indivíduo era considerado negro se tivesse um antepassado de origem africana, por mais longínquo que fosse. Em muitos estados americanos, esse foi o critério para as leis segregacionistas que proibiam, entre outras coisas, que brancos e negros casassem entre si, frequentassem a escola juntos ou até mesmo se servissem do mesmo bebedouro. O sistema americano de classificação de raças sempre omitiu a categoria "mestiços", como se fosse possível existir algum grau de pureza dentro de grupos populacionais. A rotulação oficial nos Estados Unidos é até hoje tão arbitrária que divide os cidadãos segundo critérios de cor de pele (brancos e negros), linguísticos (hispânicos) e geográficos (asiáticos). Durante o infame regime do apartheid na África do Sul, que fez dos não brancos cidadãos de segunda classe até 1994, os funcionários do estado passavam um pente ou lápis no cabelo das pessoas para, dependendo do grau de crespidão, classificá-las como negras ou coloured (mestiças). O método criava situações absurdas como a de membros da mesma família recebendo rótulos distintos.

Uma Gota de Sangue alerta para o que ocorre quando um estado se mete a catalogar a população segundo critérios raciais com o objetivo de, a partir deles, elaborar políticas públicas: pouco a pouco, os próprios cidadãos passam a acreditar naquela divisão e se veem obrigados a defender interesses de gueto. Isso cria conflitos políticos e rancor, inclusive nas situações em que as leis tentam beneficiar um grupo antes segregado. É o caso da Índia, país com o maior programa de cotas do mundo. O complexo sistema indiano de castas, tornado oficial pelo imperialismo inglês no século XIX, levou a que o governo daquele país, na década de 50, concedesse privilégios ao grupo dos intocáveis, ou dalits, e a "outras classes retardatárias" – expressão contida no texto constitucional do país. Uma forma de tentar compensá-los das injustiças sofridas no passado. O resultado é que eles passaram a ser invejados. Em 2008, os membros da etnia gujar, do norte da Índia, entraram em choque com a polícia, em protestos que mataram quatro dezenas de pessoas, para pedir o próprio rebaixamento no sistema de castas. Sua reivindicação: também serem considerados inferiores o suficiente para ganhar cotas no serviço público e em universidades. Conseguiram.

No livro de Magnoli, emerge como um desvio estranho a tentativa de instituir uma classificação oficial de raças no Brasil, país cuja identidade nacional foi construída sobre a ideia da mestiçagem. Não se trata de mito: análises genéticas da população demonstram que o DNA de um brasileiro tem, em média, proporções iguais de heranças maternas de origem europeia, africana e ameríndia. Magnoli argumenta que é exatamente essa realidade mestiça que os defensores das ações afirmativas querem destruir, ao tentar somar todos os que se consideram "pardos" à categoria de "negros". Para os ativistas da negritude, a identidade racial é, na verdade, questão ideológica. Isso explica por que uma das principais perguntas feitas aos candidatos às cotas no Brasil é se já se sentiram discriminados. Resposta correta para conseguir a vaga: sim. A baiana Sabynne Christina Silva Regis preferiu não mentir e, em entrevista de seleção do Itamaraty para uma bolsa de estudos para "afrodescendentes", disse nunca ter sido vítima de preconceito racial. Ela está convicta de que isso lhe custou a vaga. Que uma pessoa se considere "parda" não basta aos racialistas brasileiros. "O que se quer é açular a luta de classes – e, nesse contexto, a mestiçagem é incômoda porque elimina a polarização política com base em raça", diz Leão Alves, secretário-geral da ONG Nação Mestiça, com sede em Manaus.

A ideia de que existem raças é um anacronismo que não condiz com a tradição brasileira e com as mudanças que vêm ocorrendo no mundo civilizado. Barack Obama, presidente do país que inventou a regra da gota única de sangue, define-se não como negro, mas como mestiço. E não deixa de ser curioso que, se fosse brasileiro, isso talvez o impedisse de ganhar uma bolsa no Itamaraty. O filósofo Kwame Anthony Appiah, especialista em estudos afro-americanos da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, colocou a questão nos seguintes termos, em entrevista a VEJA: "O estado brasileiro pode não ter ajudado os descendentes dos escravos a sair da pobreza, mas pelo menos jamais os discriminou ativamente, como ocorreu nos Estados Unidos. Isso faz uma grande diferença. Adotar políticas raciais, agora, significaria criar no Brasil uma minoria com privilégios. Em democracias, a existência de minorias com tratamento especial quase sempre resulta em encrenca. A pergunta que os brasileiros deveriam se fazer é: isso vale a pena?". Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli, contribui para que se responda: não, não e não.


Com reportagem de Marina Yamaoka e Nathália Butti

RAÇA COMO IDEOLOGIA

Fotos Lailson Sa ntos e Xando Pereira

Desde 2002, o Itamaraty mantém um programa de bolsa de estudos, no valor de 25 000 reais, para "afrodescendentes" que pretendem seguir carreira diplomática. A bióloga Mariama da Silva, de 26 anos, de São Paulo, e a veterinária Sabynne Regis, de 35 anos, de Salvador, inscreveram-se no programa em 2005. "Durante o processo de seleção, contei como é viver neste país, onde o preconceito é velado", diz Mariama (à esquerda). Sabynne (à direita) não abordou a questão r acial. "Os avaliadores queriam ouvir uma situação de discriminação, mas eu não tinha nada para contar", diz ela. Mariama ganhou a bolsa; Sabynne, não. O edital para o programa não faz segredo sobre os critérios ideológicos de seleção: "a experiência como negro" do candidato está no topo da lista de prioridades.

"Esse caminho conduzirá a uma carteira de identidade racial"

O sociólogo Demétrio Magnoli, autor de Uma Gota de Sangue, conversou com VEJA


Lailson Santos

O AUTOR - Magnoli diz que os defensores das cotas querem criar um racismo de massas no Brasil.


O senhor escreveu, certa vez, que ficou incomodado ao deparar com o item "raça" no formulário de matrícula da escola de sua filha. Por quê?
Porque esse é o primeiro documento público no Brasil que compulsoriamente associa as pessoas nominalmente a uma raça. É um documento diferente das pesquisas anônimas do censo demográfico. No caso da matrícula escolar, ao se associar um nome a uma raça, repete-se uma prática fundamental das políticas raciais no mundo inteiro, desde o século XIX. Não vejo nenhum dilema político em que as pessoas, na esfera privada, imaginem participar de uma raça. É um direito de cada um criar identidades próprias. O problema é quando o estado cria e impõe um rótulo às pessoas. No caso das matrículas, isso foi feito através de uma norma do Ministério da Educação (MEC), válida para escolas públicas e privadas. Os pais devem declarar a "raça" de seus filhos. Hoje, todos os formulários de saúde e educação no país têm esse item. O Brasil está oficializando as identidades raciais.

Qual é o perigo?
A função desse conjunto de documentos é impingir aos cidadãos uma marca racial da qual não poderão fugir e que depois terá efeitos práticos em sua vida, no vestibular ou no mercado de trabalho. Estamos trilhando um caminho que conduzirá a uma carteira de identidade racial.

Quem ganha com isso?
Em todos os lugares em que foi aplicado esse tipo de medida, formaram-se elites políticas sustentadas sobre bases raciais. Seu interesse é ganhar influência, votos e audiência social. No Brasil, os promotores dessas políticas imaginam que o racismo brasileiro leva as pessoas a "negar a sua verdadeira raça". Para eles, incentivos oficiais, vagas em universidades e cotas no mercado de trabalho vão ajudar os mestiços a "assumir a sua negritude" – frase que se ouve a toda hora. Pretende-se com isso criar uma larga base social para que os promotores das políticas raciais se ergam como lideranças políticas. Eles querem criar um racismo de massas, algo que não existe no Brasil. Há, sim, um racismo difuso, mas não um ódio racial de massas.

Por que essa agenda foi adotada pelo Partido dos Trabalhadores?
Porque o partido mantém relações com ONGs que promovem tais políticas, muitas por influência de entidades filantrópicas americanas. Como não têm apoio popular, as ONGs precisam se atrelar a um partido para ganhar representatividade e exercer pressão sobre o estado. Embora hoje o PT seja a principal agremiação a conduzir essa bandeira, vale lembrar que as políticas raciais começaram com o PSDB, durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso.

O que é avaliado de verdade na hora de conceder cotas?
No estado racial, as pessoas têm de demonstrar uma identidade e assumi-la. Os desviantes são aqueles que se recusam a fazê-lo. Como não existe ninguém "verdadeiramente negro", assim como não existe "verdadeiramente branco", o que se tenta avaliar é, no fundo, a ideologia. Entre pessoas igualmente pardas, ganha a vaga aquela que se diz vítima de discriminação. Essa resposta é associada a uma ideologia da negritude que serve de critério para as comissões universitárias decidirem sobre a distribuição de cotas. É quase o mesmo que beneficiar no vestibular os alunos que estão de acordo com as ideias de determinado partido.

A criação de um racismo de massas é um caminho sem volta?
Volta sempre existe, mas é preciso saber a que custo. Em Ruanda, pagou-se o preço de um genocídio. Posteriormente, o estado ruandês decidiu proibir a classificação racial da população. Se o Brasil insistir nas políticas raciais e se elas se tornarem enraizadas, coisa que ainda não ocorreu, a sociedade vai pagar um preço alto, impossível de prever.



Fonte: Revista Veja - Edição 2128 - 2 de Setembro de 2009.

Democracia na internet, por Manuela D'Ávila*


A internet revolucionou o acesso às informações e à cultura. Hoje temos ao alcance dos dedos quase todo o conhecimento produzido pela humanidade. Além disso, o contato ultrapassou a barreira da distância, permitindo conhecermos e nos relacionarmos com pessoas a milhares de quilômetros. E mesmo a forma de vermos TV, ouvirmos músicas e acessarmos nossas contas bancárias mudou radicalmente depois da internet.

Aos poucos, nossa legislação está se adaptando a estes novos tempos. Mas está em debate na Câmara um projeto que pode atingir um valor caro para nossa democracia: a liberdade de expressão.

Aprovado pelo Senado em 2008, o projeto de lei sobre crimes digitais no Brasil cria uma série de normas e procedimentos para combater os crimes na internet. Mas, muito longe de seu objetivo original, o projeto poderá transformar provedores de acesso em centros de espionagem e delação. O projeto inviabiliza, por exemplo, a rede wi-fi pública que existe no Parque da Redenção, bem como as redes wi-fi abertas que existem nos shoppings.

Além disso, ele desobriga o sistema bancário de proteger seus clientes, invertendo a lógica e responsabilizando os clientes pelos desfalques que eles podem sofrer. Mas o projeto vai além: se aprovado, os usuários podem ser criminalizados pelo download de arquivos e músicas.

O projeto é alvo de um abaixo-assinado virtual com quase 150 mil assinaturas, disponível na internet.

A reação ao projeto, apelidado de “AI-5 Digital”, cresce a cada dia.

A inspiração deste projeto é a Convenção de Cybercrimes, assinada, em 2001, em Budapeste, na Hungria. Montada pelos lobbies de fabricantes de softwares e de direitos autorais da Europa, a convenção não foi assinada pelo Brasil e por nenhum país latino-americano. Nem pela maioria das grandes nações em desenvolvimento, como China e Índia.

Em busca de apoio, os defensores do AI-5 Digital afirmam que a lei vai reforçar o combate ao abuso sexual de menores. Mas já há legislação específica sancionada em novembro de 2008 que aumenta a pena máxima de crimes de pornografia infantil na internet de seis para oito anos de cadeia, além de estabelecer punições mais rígidas para a aquisição, posse e divulgação de material pornográfico.

Não se trata, portanto, de um projeto que irá proteger as conquistas que tivemos com a popularização da internet. O projeto do senador Azeredo, se aprovado, em nada afetará a vida dos cibercriminosos, mas afetará em muito a vida dos demais cidadãos.

Ou falamos agora, ou corremos o risco de, na internet, nos calarem como na época do AI-5.

*Deputada federal (PC do B-RS)


Fonte: Jornal Zero Hora, Nº 16078, 29 de Agosto de 2009, edição de hoje

Veja abaixo a imagem em: www.folhadejandira.com.br/interna/interna.asp..

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Olho grego - Corruptos ou assassinos. Qual criminoso é pior?


Por Renato Janine Ribeiro

Renato Janine Ribeiro
é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro
.br

O que é pior, o crime de corrupção ou o crime contra a vida? Essa pergunta às vezes é interpretada em termos de classes sociais. Corruptos são ricos; assassinos cruéis, pobres. Criminosos de colarinho-branco furtam dinheiro público e assim impedem a construção ou manutenção de hospitais e escolas.

Matam, ou pelo menos geram ignorância. Contudo, seu crime é cometido à distância. Eles, pessoalmente, não matam ninguém, não torturam, não se sujam. Outros criminosos roubam, olham a vítima na cara, espancam-na, às vezes a matam com crueldade. O dano que fazem aos cofres públicos é pequeno. Se medirmos o custo social de seus crimes, provavelmente é menor do que o dos criminosos elegantes e educados de cima.

Há várias maneiras de lidar com essa distinção. Podemos dizer que os primeiros criminosos, os ricos que furtam a todos nós, não representam perigo para nossa segurança física. São pessoas de convívio social possível. A pior pena para eles é forçá-los a devolver o dinheiro furtado. É provável que não lhes sobre nada.

Dificilmente usarão da força bruta contra alguém. Não precisariam ir presos, a não ser, claro, como exemplo e também para persuadi-los a devolver o que subtraíram. Essa é a tese de parte razoável de nossa imprensa: só deve perder a liberdade quem representa risco para a segurança (basicamente, física) dos outros. Mas nem todos concordam com isso. Porque desse modo vai para a cadeia o pé de chinelo, digamos assim, e não o grande criminoso.

shutterstock
O criminoso que assalta ou mata tem contato direto com sua vítima. É preso por ameaçar o convívio social

Imaginemos a seguinte situação: um país, devido à corrupção, tem um péssimo sistema de Educação e oferece poucas oportunidades aos mais pobres.

Parte destes acaba indo para a criminalidade. Então, quem punir? Irão presos os pobres que assaltaram, estupraram, mataram. Já os ricos que roubaram dinheiro público devolverão o que puderem e terão uma pena alternativa.

Isso está correto, se as pessoas forem presas em função de sua periculosidade - isto é, do potencial de perigo que representam para a sociedade. Mas é injusto, se perguntarmos quem causou essa situação torta. Porque ficarão soltos os maiores responsáveis, os causadores da calamidade, e serão presas pessoas que, não houvesse a corrupção, talvez não fossem para o caminho do crime hediondo. Mais um ponto, aqui.

O sistema penal obedece a uma lógica dupla. Por um lado, pune em função do passado. Não é justo condenar alguém que não tenha cometido um crime. A justiça, neste caso, é retributiva, isto é, retribui o mal que foi feito. Mas a característica que enobrece a justiça moderna é não pensar só no passado, e sim no futuro. Deve-se pagar pelo que se fez, mas deve-se, sobretudo, pensar no que vai acontecer de agora em diante.

Isso quer dizer que alguém só deve ser preso, por exemplo, se assim evitarmos que cometa novos crimes, ou se dissuadirmos outras pessoas de o imitarem. Então, quem merece mais ir preso? O pobre cruel ou o rico corrupto? O diretamente mau ou o indiretamente malvado? Quem fez mal a alguns ou a multidões? Difícil essa opção. É evidente que, conforme eu formule a pergunta, induzirei mais uma resposta ou outra. Se perguntar quem é mais perigoso para encontrar na rua, é o bandido cruel. Se perguntar quem causou maiores males para a sociedade, é o rico corrupto.

Antonio Cruz
O banqueiro Daniel Dantas depõe na CPI dos grampos. Abaixo, manifestantes pedem sua prisão. Crimes de corrupção podem atingir, ainda que sem o contato face a face, uma multidão de pessoas
Valter Campanato/

Impunidade Esta discussão, no Brasil, tem um quê de abstrata. Mas, nos Estados Unidos, Bernard Madoff foi condenado a 150 anos de prisão. Mesmo que viva ainda muito tempo, não deverá sair nunca da cadeia. Seu crime - furtar uma fortuna de ricos e de fundos de caridade - veio à luz em dezembro de 2008; foi condenado em sete meses.

No Brasil, provavelmente nunca seria preso. O Supremo o soltaria, se um juiz o condenasse. Se um dia fosse julgado em última instância, algum detalhe processual o salvaria.

Mas a discussão, em tese, continua válida. Porém, só à primeira vista a oposição aqui está entre direita e esquerda. Sim, porque a um olhar apressado parece que a cadeia para os violentos (isto é, os pobres) seria uma opção de direita. Os ricos protegeriam os seus, é essa a ideia.

Só que está errada. O erro é que ladrões como Madoff não roubaram pobres - com exceção, talvez, de alguns fundos. Suas principais vítimas foram os ricos. Todos sabemos de ladrões de casaca que deram golpes na praça, prejudicando grandes empresas ou empresários, e soltos ficaram. Portanto, não prendê-los não é proteger os ricos. É, justamente, não protegê-los...

Há uma discussão clássica a respeito. Na Inglaterra do século XVIII, como em vários países europeus, a pena de morte se aplicava a muitos delitos hoje tidos por leves - como o furto, digamos, de uns R$ 20. Um historiador comentou que isso provava o caráter de classe de uma justiça que enforcava os pobres. Foi fácil contra-argumentar que quem rouba ricos pega valores bem mais altos: um furto de R$ 20 é um crime contra pobres. Portanto, a Justiça da época podia até perseguir os pobres, mas não por este argumento - que mostra justamente que ela protegia a propriedade, ainda que pequena, dos pobres.

Mas o debate daqui é difícil de resolver. Procurei expor duas posições. Tentarei uma conclusão provisória. Defender penas altas para quem agride fisicamente outra pessoa é uma reação talvez mais frequente das pessoas. E há uma razão para isso. Quem "mata rindo", para citar o codinome de um bandido particularmente odioso, vai muito longe na desumanização.

Uma pessoa que, quanto mais sua vítima implora, mais a agride, é alguém a quem falta o mínimo de contato social. O corrupto Bernie Madoff talvez tenha, em comparação, uma dificuldade maior de ser tão desumano - de olhar na cara a sua vítima e de gozar com seu sofrimento. Talvez o grande ladrão goze apesar do sofrimento alheio. Talvez o criminoso cruel goze graças ao sofrimento do outro. Não deixa de ser uma diferença.


Fonte: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/38/corruptos-ou-assassinos-qual-criminoso-e-pior-147873-1.asp

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sorria: você está sendo filmado


As novas tecnologias estão acabando com a privacidade das pessoas.

Algumas pessoas sabem todos os lugares em que você esteve no ano passado. Possuem também a lista das mercadorias que você comprou, as músicas que ouviu e as pessoas com quem conversou. É possível que elas saibam até a sua preferência sexual. Assustador, não? O motivo alegado para tanta perseguição é apenas trazer segurança e conforto. Para você. Assim como as novas tecnologias se esmeram em acumular e disponibilizar o máximo de informações sobre todos os assuntos de interesse, muitas instituições utilizam os mesmos instrumentos para obter e manipular dados sobre pessoas simples, como eu e você. Empresas tentam reunir informações detalhadas de seus possíveis clientes para oferecer produtos e serviços personalizados no momento apropriado. Governos e agentes de segurança tentam registrar todas as atividades da população em busca de criminosos e infratores. O preço a pagar por esses benefícios, no entanto, é ser observado o tempo todo e ter suas informações mais íntimas devassadas.

"Estamos em transição do 'estado de vigilância' para a 'sociedade de vigilância'", afirma o cientista político canadense Reg Whitaker, autor do livro The End of Privacy (O fim da privacidade), inédito no Brasil. Ao contrário do que previam romances como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o que está acontecendo não é apenas um governo centralizado que monitora as atividades da população. Empresas, família e até mesmo vizinhos instalam sistemas de vigilância cada vez mais sofisticados. Da mesma maneira, em vez de o Estado obrigar as pessoas a se registrarem em sistemas de controle, são os próprios cidadãos que, cada vez mais, entregam seus dados pessoais de forma voluntária. "A nova tecnologia de controle se diferencia das anteriores de duas formas: ela é descentralizada e consensual", diz Whitaker.


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Fonte: Revista Superinteressante - Edição 164


terça-feira, 25 de agosto de 2009

RUMOS DA WEB - A próxima revolução online


Pierre Lévy projeta novo estágio no ciberespaço, com maior organização dos dados disponíveis

Apontado como o profeta do ciberespaço, o filósofo Pierre Lévy se debruça agora sobre como organizar o caos da internet. É que vivemos tempos de ubiquidade. O que isso significa? Quer dizer que a informação está onipresente na rede: a partir do momento que você publica um arquivo online, fica disponível em todos os lugares ao mesmo tempo, acessível a todos. Mas é preciso, prevê Lévy, dar um passo além, e organizar essa bagunça.

O especialista refere-se à necessidade de dar sentido a esses dados. Sobre esse novo estágio da rede, que atende pelo nome de web semântica, ele palestrou ontem na Capital, durante o 5º Fórum de Internet Corporativa. O evento foi promovido pela unidade gaúcha da Associação Brasileira das Agências Digitais (Abradi-RS), como passa a ser chamada agora a Associação Gaúcha das Agências Digitais (Agadi).

Na web semântica de Lévy, os dados ganham uma camada extra de informação sobre eles mesmos (isso se chama metadados). É o que permitiria categorizar o conteúdo online. Como isso seria, ainda é cedo para determinar. Também não é para agora. É para a partir de 2015. Mas o filósofo já prevê que haverá uma grande revolução graças à internet, mas no campo cognitivo. É algo abstrato, admite.

– É como se falássemos de internet com pessoas do século 19. Não poderiam entender. Estamos hoje nessa mesma situação (em relação ao espaço semântico). As grandes etapas da evolução cultural sempre são coisas inimagináveis – afirma.

Como tentativa de elucidar essas ideias, buscou um exemplo no Photoshop, software de edição de imagens. O que permite que as fotos sejam manipuladas? O fato de que há uma matriz básica, um código.

– A ideia da web semântica é codificar, de modo que se possa calcular as ideias, fazendo com que o significado possa ser manipulado por computadores automaticamente – explica.

Umas das principais limitações da internet ainda é a dificuldade de os computadores interpretarem a informação de forma contextualizada.

Nesse cenário projetado por Lévy, ocorrerão cada vez mais representações do mundo físico na web. Mas isso também não significa que tudo vai acontecer no ciberespaço.


Leia também: O consumidor do amanhã - Author: Ricardo do Bem, muito interessante.



Fonte: Jornal Zero Hora - Edição nº 16073 - 25 de Agosto de 2009.

sábado, 22 de agosto de 2009

Que tempo vivemos?, por Maria Cecília Medeiros de Farias Kother*


Vivemos em um tempo que exige reflexões profundas que nos conduzam a posições que ainda não estão bem definidas e justamente por assim não estarem é que elas nos impelem a refletir e a tomá-las.

Mundo diferente, pessoas diferentes. Nesta conexão interativa homem/mundo, é que se estabelecem os resultados que aí estão.

Numa ligeira análise, vê-se que estamos em um mundo movido a crises. A crise econômica que arrebata finanças e produz desempregos nos deixa em estado de alerta. A crise ambiental que atinge o equilíbrio do ecossistema, com chuvas, enxurradas, tremores de terra, mares agitados, raios, secas, frio exagerado, leva medo às pessoas. A crise política que assola vários países, incluindo os nossos vizinhos, ocasiona insegurança e incompreensão. A crise da saúde, pela pandemia da gripe A (H1N1), que vem abalando o mundo e avançando sorrateiramente, deixa a todos preocupados.

Nesse rol de crises que são visíveis e objetivas, está inserida uma crise que se traduz na escassez de valores, como está se evidenciando nos comportamentos e atitudes das pessoas. É o caso, por exemplo, da própria vida como valor maior da pessoa, que está ameaçada pela disseminação do crack, pelo trânsito desorientado e descuidado e pelo mundo do crime.

O respeito como valor entre os indivíduos está se evaporando nas ações e nas relações interpessoais. A honestidade, premissa importante no ser e no fazer, está passando por um processo de elasticidade, chegando próxima ao rompimento e, pela confusão que imprime pelo exemplo, tornando confusos os limites entre ela e a desonestidade. Nesse enfoque, esta passa a ser rotulada como “esperteza”, isto é, “esperto” é quem pratica a desonestidade e busca transformar o seu aspecto negativo em positivo.

A crise da verdade como limite entre o que é certo e o que é errado, levada pelos múltiplos interesses que a deixam de lado e exercitam o seu contrário, a mentira, na busca de vantagens próprias, acarreta as mais variadas situações. Essa é uma crise na qual os indivíduos, mesmo quando flagrados, negam seus comportamentos de desonestidade no falar e no fazer e ainda são premiados com a indulgência da impunibilidade.

Erros graves na sociedade, no mundo econômico e no mundo da política são impingidos como se eles não tivessem ocorrido. Como não existiam e para assim serem vistos, esses erros são empurrados por forças explicáveis, mas inexplicáveis por não se justificarem.

Por certo, é de se admitir também que, mesmo dentro desse redemoinho de crises, ainda existem pessoas boas e responsáveis que, embora chocadas, têm o compromisso de refletir e pensar em mudanças.

Sabemos que depois de uma crise vêm situações melhores, mas, embora isso possa ser verdade, é grande também o número de crises que estão se sobrepondo em nossas vidas. Portanto, é importante refletirmos e pensarmos que poderemos encerrar esse período e que um novo tempo se iniciará. Como será esse novo período, que tipo de pessoas seremos e que estilo de vida levaremos são questões que serão resolvidas no seu devido tempo, mas que não podem passar despercebidas e sem a nossa interferência, pois, como diz Ortega y Gasset, “o homem é ele e suas circunstâncias”.

*Diretora do Instituto MC Educação Social


Fonte: Jornal Zero Hora - Nº16069 - 21 de Agosto de 2009.

Imagem: Google

sábado, 15 de agosto de 2009

Só para entender... Do mesmo lado por J.R. Guzzo

"Para o que chamavam de ‘direita’ e hoje chamam de ‘base aliada’, o interesse básico é precisamente o mesmo – dinheiro"


Dia após dia, nestas últimas semanas, o público vem se admirando com exibições de amor entre gente que deveria se odiar. Por que estariam aos abraços, fazendo elogios radicais uns aos outros, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente Fernando Collor e o atual presidente do Senado, José Sarney? Lula, numa declaração inesquecível, disse que Sarney era "o grande ladrão da Nova República"; contra Collor, ele e o seu partido se jogaram numa guerra de extermínio desde o primeiro dia de seu governo e só sossegaram quase três anos depois, quando o inimigo foi posto para fora da Presidência. Collor, por sua vez, disse que Sarney era um "batedor de carteira" – carteira "da história", em suas palavras, o que não é tão ruim quanto uma carteira de verdade, mas assim mesmo é coisa para lá de pesada. Também afirmou, na sua disputa presidencial contra Lula, que o adversário iria expropriar as casas e apartamentos das pessoas se fosse eleito – isso para não falar da humilhação pública que lhe impôs ao levar para a televisão uma ex-companheira do atual presidente, que o acusou de racismo e de pressão para abortar a filha que acabariam tendo. Sarney se queixa até hoje das 1 200 greves, a maioria comandada pelo PT, que teve ao longo de seu governo, e já descreveu Collor como "um homem profundamente transtornado".

A vida passa, o mundo gira, e eis aí os três, hoje, como os melhores amigos do mundo. Como é que pode? Para o brasileiro comum, que tem pouca paciência, interesse ou respeito por política e políticos, a resposta é curta: é tudo safadeza. Para os analistas que precisam dar explicações de caráter algo mais técnico, esse melado geral é a busca da "governabilidade" – ou seja, a maioria dos homens públicos tem de engolir mais ou menos tudo, ou não se consegue governar o Brasil. A explicação mais realista, porém, provavelmente está no fato de que Lula, Sarney, Collor e o restante de sua tropa querem exatamente a mesma coisa e estão exatamente do mesmo lado; por isso se entendem tão bem. A coisa que querem hoje é a mesma que quiseram sempre: manter de pé o Brasil velho, onde o que importa é o mundo do governo e do Erário, e não o mundo do trabalho e da produção. Para Lula e o PT, este é o Brasil que serve para empregar gente do partido e arredores, financiar ONGs criadas pelos amigos, passar dinheiro público para as suas empresas "terceirizadas", sustentar centrais sindicais que não prestam contas, e por aí se vai. Para o que chamavam de "direita" e hoje chamam de "base aliada", o interesse básico é precisamente o mesmo – dinheiro –, que perseguem na forma de empregos, verbas, fundações, emissoras de rádio e TV, licenças, isenções, anistias e tudo o que conseguem arrancar da máquina estatal. Os dois lados, em suma, não poderiam ser mais parecidos; as empreiteiras de obras públicas, aliás, gostam de ambos. Tudo isso, naturalmente, exige muito imposto para ser pago – de 1º de janeiro de 2009 até o fim da semana passada, mais de 630 bilhões de reais.

É claro que essa liga é feita de material resistente; vive-se muito bem dentro dela. Dá para entender perfeitamente o espírito da coisa quando se considera que Brasília, a sua cidade-guia, não produz uma caixinha de chicletes, mas tem a maior renda per capita do país – mais de 20 000 dólares anuais. Essa renda, naturalmente, se distribui à la brasiliense; uma capita de Taguatinga, com certeza, vale muito menos que uma capita do Lago Sul. Mas o Brasil velho não é mesmo para todo mundo, conforme reza a mais recente doutrina do presidente Lula; é para ser desfrutado em primeiro lugar por pessoas como o senador Sarney, por exemplo, que não pode ser tratado como "um cidadão comum".

Lula diz essas coisas e tem esses amigos porque acha que, com sua popularidade, pode tudo – aliás, como diz o deputado Ciro Gomes, ninguém mais conseguiria defender ao mesmo tempo Sarney, Collor e Renan Calheiros e continuar vivo politicamente. Mas o problema central de Lula pode não estar nos aliados que tem hoje e sim nos aliados, de verdade, que teve em outros tempos. Conforme se noticia, a senadora e ex-ministra Marina Silva, após trinta anos de PT, estaria pronta a mudar de ambiente e lançar sua própria candidatura à Presidência em 2010, batendo de frente com Dilma Rousseff, a candidata que Lula quer ver no seu lugar. Marina pode ter ideias equivocadas; mas não abandonaria nenhuma delas em troca de uma diretoria na Eletrobrás ou de empregos para as sobrinhas. Com gente assim o manual de conduta do Palácio do Planalto não tem como lidar.


Fonte: Revista Veja - Edição 2126 - 19 de agosto de 2009.

Imagem: Google

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A utopia possível na sociedade líquida

O sociólogo afirma que é preciso acreditar no potencial humano
para que um outro mundo seja possível
03/08/2009
Dennis de Oliveira

Zygmunt Bauman é um dos pensadores contemporâneos que mais têm produzido obras que refletem os tempos contemporâneos. Nascido na Polônia em 1925, o sociólogo tem um histórico de vida que passa pela ocupação nazista durante
Foto: Reprodução/Creative Commons

a Segunda Guerra Mundial, pela ativa militância em prol da construção do socialismo no seu país sob a direta influência da extinta União Soviética e pela crise e desmoronamento do regime socialista.
Atualmente, vive na Inglaterra, em tempo de grande mobilidade de populações na Europa. Professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds, Bauman propõe o conceito de "modernidade líquida" para definir o presente, em vez do já batido termo "pós-modernidade", que, segundo ele, virou mais um qualificativo ideológico.
Bauman define modernidade líquida como um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual;
o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. A seguir, a íntegra da entrevista concedida pelo sociólogo à revista CULT.

CULT - Na obra Tempos líquidos, o senhor afirma que o poder está fora da esfera da política e há uma decadência da atividade do planejamento a longo prazo. Entendo isso como produto da crise das grandes narrativas, particularmente após a queda dos regimes do Leste Europeu. Diante disso, é possível pensar ainda em um resgate da utopia?

Zygmunt Bauman - Para que a utopia nasça, é preciso duas condições. A primeira é a forte sensação (ainda que difusa e inarticulada) de que o mundo não está funcionando adequadamente e deve ter seus fundamentos revistos para que se reajuste. A segunda condição é a existência de uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo, a crença de que "nós, seres humanos, podemos fazê-lo", crença esta articulada com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los. Em suma, potencializar a força do mundo para o atendimento das necessidades humanas existentes ou que possam vir a existir.

CULT - Por que se fala tanto hoje de "fim das utopias"?

Bauman - Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer, o "equilíbrio natural". A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo

Foto: Reprodução/Creative Commons

os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.
Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois o realiza.
Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas "daninhas". É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador.

CULT - O que isso significa para a humanidade de hoje?

Bauman - Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado.
Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma "associação de caçadores", se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa.
Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de "individualização".
E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com "consciência ecológica" servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de "desregulamentação".


"Para que a utopia renasça, é preciso a confiança no potencial humano à altura da tarefa de reformar o mundo"

CULT - Diante disso, a esquerda não tem possibilidades de ter força social?

Bauman - É óbvio que, em um mundo povoado principalmente por caçadores, não há espaço para a esquerda utópica. Muitas pessoas não tratam seriamente propostas utópicas. Mesmo que saibamos como fazer o mundo melhor, o grande enigma é se há recursos e força suficientes para poder fazê-lo.
Essas forças poderiam ser exercidas pelas autoridades do engenhoso sistema do Estado-nação, mas, como observou Jacques Attali em La voie humaine, "as nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo". E as forças da globalização são tudo, menos instintos ou estratégias de "jardineiros", favorecem a caça e os caçadores da vez.
O Thesaurus [dicionário da língua inglesa, de 1892] de Roget, obra aclamada por seu fiel registro das sucessivas mudanças nos usos verbais, tem todo o direito de listar o conceito de utópico como "fantasia", "fantástico", "fictício", "impraticável", "irrealista", "pouco razoável" ou "irracional". Testemunhando assim, talvez, o fim da utopia.
Se digitarmos a palavra utopia no portal de buscas Google, encontraremos cerca de 4 milhões e 400 mil sites, um número impressionante para algo que estaria "morto". Vamos, porém, a uma análise mais atenta desses sites. O primeiro da lista e, indiscutivelmente, o mais impressionante é o que informa aos navegantes que "Utopia é um dos maiores jogos livres interativos online do mundo, com mais de 80 mil jogadores".
Eu não fiz uma pesquisa em todos os 4 milhões de sites listados, mas a impressão que tive após uma leitura de uma amostra aleatória é que o termo utopia aparece em marcas de empresas de cosméticos, de design de interiores, de lazer para feriados, bem como de decoração de casas. Todas as empresas fornecem serviços para pessoas que procuram satisfações individuais e escapes individuais para desconfortos sofridos individualmente.


"A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo"

CULT - Nesta sociedade líquido-moderna, como fica a ideia de progresso e de fluxos de tempo?

Bauman - A ideia de progresso foi transferida da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. Você ouve atentamente as informações de que, neste ano, "o Brasil é o único local com sol no inverno", neste inverno, principalmente se você quiser evitar ser comparado às pessoas que tiveram a mesma ideia que você e foram para lá no inverno passado.
Ou você lê que deve jogar fora os ponchos que estiveram muito em voga no ano passado e que agora, se você os vestir, parecerá um camelo. Ou você aprende que usar coletes e camisetas deve "causar" na temporada, pois simplesmente ninguém os usa agora.
O truque é manter o ritmo com as ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando - e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder. Eu não precisaria acrescentar, uma vez que isso deva ser óbvio, que essa ênfase em eliminar as coisas - abandonando-as, livrando-se delas -, mais que sua apropriação, ajusta-se bem à lógica de uma economia orientada para o consumidor. Ter pessoas que se fixem em roupas, computadores, móveis ou cosméticos de ontem seria desastroso para a economia, cuja principal preocupação, e cuja condição sine qua non de sobrevivência, é uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação dos resíduos se tornou a vanguarda da indústria.

Leia, na íntegra, o texto inédito de Zygmunt Bauman, intitulado O triplo desafio


Fonte: Revista Cult - Edição 138

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Entrevista Jorge González - Desconstruindo as estruturas da comunicação

Para os cientistas da comunicação, a "globalização" e a "era da informação" não podem ser chamadas de conceitos, por não serem oriundas de estudos científicos

por Michel Nuñez - fotos Mo March

Confesso que, antes de chegar ao Memorial da América Latina para esta entrevista, muitas coisas me passaram pela cabeça. Dentre elas, qual seria a dinâmica e a linguagem que utilizaria numa conversa com um "cientista da comunicação". No entanto, ao encontrar Jorge González me deparei com um sujeito alegre, vestido com calça de sarja cheia de bolsos e uma camisa de botão. Logo de cara, percebi que estava diante de um cientista moderno, muito diferente dos que costumo ver pela televisão: sérios, com cabelos brancos, trajando terno e gravata e um avental branco por cima da roupa. Porém, um detalhe me chamou muito a atenção: seus óculos, que além de redondos, como os de John Lennon, tinham lentes alaranjadas. Talvez isso fosse um presságio do que viria logo adiante.

Nesta entrevista, realizada durante o II Colóquio Brasil-México de Ciências da Comunicação, evento promovido pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Jorge González fala sobre os avanços da Ciência da Comunicação, a contribuição que essa modalidade de ciência pode trazer para a sociedade e sobre os estudos que vêm sendo realizados por cientistas brasileiros e mexicanos no segmento. Desde 2004, Gonzalez coordena o Programa de Epistemologia da Ciência e Cibercultura e o Centro de Investigações Interdisciplinares de Ciências e Humanidades, da Universidade Nacional Autônoma do México.

Confira os principais trechos da entrevista e entenda por que os conceitos que adoramos usar quando discutimos assuntos relacionados à internet e à Era da Informação se transformaram em "sem-ceitos". Pelo menos na visão do cientista.

A Ciência da Comunicação surgiu na década de 1970. O que ela trouxe de novo e qual a contribuição dela para o desenvolvimento de uma sociedade?

González Depois de décadas de estudo, chegamos à conclusão de que é possível estudar, de forma integrada, a relação comunicação- informação-conhecimento, como ponto-chave da inteligibilidade de todo o vínculo social. Com trabalho científico podemos começar a entender como se compõe, como se transforma, como se desestrutura e volta a se estruturar uma sociedade. Ao contrário do que muitos pensam, nosso foco não está na produção ou no poder dos meios de comunicação, mas, sim, na importância da relação comunicação-informação- conhecimento para a composição e o desenvolvimento de uma sociedade.

" É possível estudar a relação entre comunicação, informação e conhecimento como ponto-chave da inteligibilidade do vínculo social "

Muitas pessoas colocam esse trabalho como um meio de estudar a cultura de um povo. Isso procede?

González Na verdade, o conceito "cultura" ficou pequeno em comparação ao universo de estudos no qual estamos inseridos. A cultura por si só é uma mescla de várias culturas. Não existe cultura "pura", pois ela se recompõe sistematicamente com o passar do tempo. Hoje, estamos trabalhando um conceito chamado de "ecologia simbólica", que nos permite estudar a relação comunicação-informação-conhecimento sob o ponto de vista de produção, organização e geração de estruturas e instituições sociais. Na verdade, estamos envolvidos em estudos que dificilmente são tomados por sociólogos e antropólogos, como a memética, por exemplo. Enfim, estamos tocando em estruturas autorreferenciais que vão se transformando ao longo do tempo.

Qual o maior desafio enfrentado pelos profissionais da área?

González O maior desafio está em conseguir desvincular a Ciência da Comunicação dos meios de comunicação. Trata-se de um assunto complexo, pois nosso trabalho está focado em estudar a importância desse tripé (comunicação-informação-conhecimento) na criação, no desenvolvimento e evolução de todo e qualquer tipo de sociedade, desde a mais primitiva até a mais contemporânea. Como nossa profissão é bastante nova, precisamos, antes de tudo, construir uma base sólida que nos permita, no futuro, enxergar novos horizontes.

"Tecnologia da informação é um conceito vago. O termo correto é ´tecnologia do conhecimento´, pois por meio da tecnologia acessamos as informações"

O que chama de base sólida?

González Não há como fazer ciência sem teorias, metodologias e fontes de estudo. O que estamos tentando fazer há 30 anos é construir uma estrutura forte para, assim, realizar estudos mais claros e objetivos. Hoje, por exemplo, vemos muitas teorias de comunicação baseadas em descrições. Além de torná-las pouco compreensíveis, torna difícil criarmos estruturas de estudo, ou seja, as metodologias. Se quisermos realmente que a profissão deslanche, precisamos trabalhar com transparência e bastante objetividade, para que todos, até os mais leigos, conheçam o objeto estudado e entendam o porquê do trabalho.

Você costuma comentar em suas palestras sobre a importância de se diferenciar o objeto de estudo em vez de apenas descrevê-lo. O que isso representa de maneira prática?

González Hoje, o mundo está repleto de conceitos que, no meu modo de ver, são "sem-ceitos". Ou seja, não podem ser chamados de conceitos exatamente por não serem oriundos de estudos científicos. Dentre eles está a tal da "globalização", a "cultura de massa", a "era da informação" e assim por diante. Geralmente, quem rotula isso são os jornalistas, que se sentem na obrigação de criar algo novo.

O problema é que esses "sem-ceitos", ao serem jogados na mídia, ganham força e se tornam palavras "sexys". E como o consumidor de informação adora tudo o que é sexy, atrativo, acaba incorporando os termos ao seu discurso sem saber ao certo o que isso representa. Por outro lado, a ciência trabalha anos e anos pesquisando um objeto. Porém, esses estudos só têm validade quando os cientistas conseguem diferenciar o objeto estudado dos demais já existentes. Eu sempre uso a água como exemplo. Para a grande maioria, não importa qual a composição da água. Na verdade, poucos sabem que ao beber água estão bebendo uma porção de H2O, que é composto por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.

Essas mesmas pessoas não têm o mínimo interesse em saber o porquê de cada nomenclatura. Porém, é conhecendo cada composição que conseguimos diferenciar o H2O do H2O2, que é um peróxido de hidrogênio, mais conhecido como água oxigenada. Esse desconhecimento, no entanto, pode levar a uma lesão extremamente grave, pois ao beber um gole de H2O2, que é um líquido altamente oxidante, a pessoa pode simplesmente destruir a garganta. Por isso, a importância de se diferenciar os objetos de estudo. Se nós, cientistas da comunicação, realizarmos estudos claros e objetivos ao ponto de conseguirmos diferenciar um estudo do outro, automaticamente construiremos categorias de estudos. Só assim daremos nossa contribuição à sociedade como um todo.

Sendo a Era da Informação um "sem-ceito", existe algum conceito que defina melhor esta atual época?

González Antes de qualquer coisa, é necessário dizer que a informação existe desde os primórdios. Portanto, todas as "eras" foram recheadas de informação, não apenas a atual. Se tomarmos isso como um objeto de estudo, certamente chegaremos à conclusão de que se trata de um conceito híbrido, que não acrescenta nada em termos científicos. Seguindo o mesmo caminho está a "tecnologia da informação". Para mim, esse termo não significa nada, é muito vago. O termo correto é "tecnologia do conhecimento", pois por meio da tecnologia é que acessamos as informações que, ao serem bem-entendidas e bem-interpretadas, se transformarão em conhecimento.


Você está no Brasil para participar do Segundo Colóquio Brasil-México. Por qual motivo dois países aparentemente distantes sentiram a necessidade de discutir os temas relacionados à Ciência da Comunicação?

González Todo intercâmbio é importante, independentemente da posição geográfica ou da modalidade de ciência de cada um. Porém, desde o primeiro encontro houve uma afinidade muito grande entre os cientistas. Isso se deve, em grande parte, à semelhança dos problemas sociais existentes nos dois países. Dentre eles estão: as diferenças, as desigualdades e injustiças sociais. Por outro lado, não podemos limitar esse trabalho ao Brasil e ao México. Acredito que determinar territórios de estudos não seja o melhor caminho. Temos de tomar esses encontros com um ponto de partida para o desenvolvimento de estudos bilaterais e colaborativos, que tragam benefícios não só para ambos os países, mas para toda a América Latina.

Qual é a importância dos "meios de comunicação" para uma sociedade?

González Para mim, o termo "meios de comunicação" não condiz com o papel que eles exercem dentro de uma sociedade organizada. Na verdade, eles não são meios nem comunicação. São sistemas de comunicação, ferramentas que permitem a produção de um vínculo social. Não quero dizer que elas não tenham sua devida importância. Nosso trabalho consiste, também, em estudar a integração e a relação desses elementos. Todas as "ecologias simbólicas" dependem ou envolvem "psicologias de comunicação", "psicologias de informação" e "psicologias de conhecimento", que são perfeitamente estudáveis no passado, no presente e no futuro. Isso implica em entrar em detalhes das formas de comunicação mais tradicionais, herdadas e incorporadas às atuais sociedades, como as conhecidas: cultura de informação, cultura de comunicação e cultura de conhecimento.

Atualmente, até ônibus e trens de metrô têm se tornado meios de comunicação. Você acredita que esse "bombardeio" de informações trará algum malefício à sociedade no futuro?

González Ainda tenho minhas dúvidas se estamos vivendo sob excesso de informação. Em minha opinião, o que está acontecendo é que as empresas que se dedicam a fazer comunicação transformaram-na num produto totalmente comercial, até por questão de sobrevivência. Até uma mesa de bar virou motivo para aplicação de logomarcas e campanhas publicitárias. Com certeza não há mais conteúdo na informação. Para que a mensagem seja absorvida com maior facilidade, é necessário que as informações cheguem ao destino com maior rapidez e consistência. E quanto mais mastigadas, melhor. Assim, livra o usuário do "pensar". Talvez o maior problema que podemos enfrentar no futuro seja essa falta do "pensar".

No caso da internet, ela pode ser vista como uma categoria de estudos?

González Esse é o maior desafio para nós, cientistas da comunicação. Não há dúvidas de que a rede mundial de computadores nos trouxe benefícios. Porém, precisamos pensar o assunto com bastante racionalidade. Na infinidade de informações existentes na internet vejo que há mais ruído do que informação. Ou seja, nem tudo o que lemos é algo verdadeiro, legítimo. É comum vermos definições diferentes para um mesmo objeto. Isso, em minha opinião, traz imprecisões que podem ser altamente maléficas para o desenvolvimento de uma sociedade organizada.

Sendo assim, há pouca informação de qualidade na rede mundial de computadores?

González Sem dúvida. A partir do momento em que cada um de nós pode publicar algo na internet, tornase difícil saber qual a qualidade e a veracidade dessas informações. E a única maneira de diferenciarmos informação de ruído é quando processamos a informação. Ao contrário de antigamente, quando os livros e as enciclopédias eram acessados por poucos, a internet veio para democratizar isso. No entanto, vejo que há muitos investimentos em infraestrutura tecnológica e pouco investimento em infraestrutura humana. Disponibilizar internet a todos é algo realmente fantástico sob o ponto de vista social. Mas o maior problema está no processo de uso. Ou seja, não adianta nada a pessoa saber ler e escrever e não saber se o objeto que está pesquisando na internet tem ou não fundamento científico, se a informação encontrada tem ou não qualidade, veracidade. A informação só se torna informação quando nós lhe damos um formato. Sem isso, ela torna-se algo vazio, sem sentido.

Está sugerindo que a má qualidade da navegação está relacionada à má formação acadêmica do usuário?

González Não necessariamente isso. O que quero dizer é que, independentemente da condição social e da formação acadêmica, todos estão tendo acesso à internet: o rico, o pobre, o índio, o universitário, o analfabeto. Com essa enorme variação no perfil do usuário torna-se praticamente impossível exigir que todos tenham a mesma percepção e façam a mesma interpretação do mesmo conteúdo. Imagine a seguinte cena: um índio e um homem branco sentados num ponto de ônibus de uma cidade grande qualquer.

Minutos depois chega ao ponto um ônibus pintado de vermelho e com a logomarca de uma cerveja. Para o índio, que não sabe o que significa aquela marca, a novidade está no ônibus, algo incomum em sua tribo. Já o homem branco, acostumado a ver ônibus em sua cidade, se prende mais à propaganda, que é a única novidade que lhe vem aos olhos. É exatamente a essa estrutura humana que me refiro. Num universo em que todos vêm a mesma coisa, o que vai fazer que aquele conteúdo seja bom, de qualidade e represente exatamente a mesma coisa para ambos os indivíduos é a capacidade que cada um tem em entender o que aquilo realmente significa.

Por isso, mantenho o que disse: para que a internet seja mais eficaz como sistema de comunicação é preciso que haja uma qualidade melhor na percepção e interpretação dos objetos, pois não é o objeto que informa algo. É o pensamento que transforma a visão em informação.

"Os meios de comunicação não são meios nem comunicação, mas ferramentas que permitem a produção de um vínculo social"

Atualmente, você está realizando um estudo sobre o desenvolvimento da cibercultura no México. Em que consiste esse estudo?

González Consiste em estudar como uma comunidade emergente de conhecimento local se relaciona com as novas tecnologias. E de que maneira a chegada de novos sistemas de comunicação influencia no desenvolvimento da mesma comunidade. O trabalho é tão complexo que hoje estou estudando uma civilização que nasceu, cresceu e se estruturou no meio do deserto mexicano. Muitos comentam que meu trabalho está mais para arqueologia do que para ciência. No entanto, minha felicidade está em trabalhar com pessoas e estudar o antigo, sem ter a obrigação de falar da evolução das máquinas.

Pode revelar alguma descoberta obtida com esse trabalho?

González Muitos pensam que o desenvolvimento da cibercultura está relacionado ao desenvolvimento da internet. Mas, após anos de estudos, chegamos à conclusão de que são totalmente opostos. Ao desenvolver-se em sociedades autossuficientes, organizadas e que produzem seus próprios sistemas de comunicação, a cibercultura propõe a criação de uma estrutura única e coletiva de interpretação dos objetos. Já a internet propõe exatamente o contrário. Ou seja, a interpretação é altamente individualista: você na "sua" casa, no "seu" computador, diante do "seu" monitor, criando "suas" próprias percepções a respeito de "suas" próprias pesquisas. Enfim, a cibercultura se apropria das tecnologias que, supostamente, foram desenhadas para operar individualmente, para desenvolver uma comunidade "coletivamente".

A cada dia, os novos meios de comunicação distanciam ainda mais as pessoas. Existe a possibilidade disso se agravar nas próximas décadas?

González Gostaria muito de poder responder a essa pergunta, mas só o tempo dirá. Certamente todos somos cúmplices do que nos acontece hoje. E se hoje somos massacrados pelos meios de comunicação, a culpa também é nossa, por não percebermos o que não percebemos. Para que fique mais claro, vou usar meus óculos como exemplo. Eles (óculos) têm lentes alaranjadas e estão sujos. Quando tiro-os do rosto, vejo o dia mais claro e mais limpo. Quando volto a usá-los, vejo o mesmo dia mais alaranjado, com tons de marrom e pequenos detritos, que podem me sugerir que o céu está sujo. Enfim, caso eu não tire os óculos nem para dormir, precisarei que outra pessoa me diga e me mostre o que eu não estava percebendo: que o céu estava azul e limpo. E esse papel de avisar o que não estamos percebendo é do cientista. Ao menos, deveria ser.

Fonte: http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/24/artigo144514-3.asp

domingo, 9 de agosto de 2009

Sem honestidade a sociedade não sobrevive

Entrevista: José Luiz Quadros de Magalhães

publicada na edição nº 400, setembro de 2009 do Mundo Jovem.


José Luiz Quadros de Magalhães
“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”. A advertência de Rui Barbosa (1849-1923) parece muito atual, e o risco é o descrédito com a política, as instituições e os valores. Na contramão dessa desconfiança, o professor José Luiz Quadros de Magalhães, propõe um resgate dos valores, como a honestidade, através do diálogo e do cuidado com as escolhas que fazemos na vida.

José Luiz Quadros de Magalhães,
professor da PUC-Minas e diretor do Centro de Estudos Estratégicos do Estado (CEEDE).
Endereço eletrônico: ceede@uol.com.br


Mundo Jovem: Existe uma cultura de que a corrupção e a desonestidade são exclusivas dos políticos?

José Luiz Quadros de Magalhães: A mídia, e especialmente a grande mídia, tem vinculado a corrupção com o estado e os políticos. Em primeiro lugar é importante lembrarmos que os vereadores, deputados estaduais e federais, senadores, prefeitos, governadores e o presidente da república são representantes do povo, escolhidos livremente pelo voto secreto. Precisamos acompanhar o trabalho dos nossos representantes que devem atuar seguindo a nossa vontade e não mais votarmos naqueles que não cumprem corretamente as suas funções.

Em segundo lugar, não existe corrupção sem a presença de dois polos nesta relação criminosa: o corruptor e o corrompido. A grande mídia fala apenas nos corrompidos que seriam, quase que exclusivamente, os políticos. E quem é o outro lado desta relação? Quem paga as campanhas eleitorais para conseguir contratos com o estado posteriormente? Quem se beneficia dos gastos públicos em obras, em fornecimento de bens para a administração pública. Precisamos buscar o outro lado desta relação. A corrupção não ocorre só na política e a política reflete valores presentes em nossa sociedade. Não podemos ficar eternamente colocando a culpa em políticos que nós mesmos escolhemos. A grande mídia que só coloca a culpa nos políticos quer na verdade desmoralizar o estado e a democracia.


A corrupção seria fruto dos valores do mundo atual?

José Luiz Quadros de Magalhães: Realmente, podemos nos perguntar se não seria a sociedade de consumo em que vivemos, onde as pessoas valem pelo que têm e não pelo que são, um fator preponderante nestas condutas? Será que uma sociedade fundada no individualismo, no egoísmo, na competição e na acumulação de bens tem futuro?

A competição e o individualismo, valores saudados como fundamentais em nosso sistema econômico, reflete-se de diversas formas na vida social. Vivemos em uma sociedade da competição permanente: na TV os programas escolhem a melhor música, o melhor cantor, o melhor filme e nós reproduzimos isso no dia-a-dia, quando escolhemos o melhor sanduíche, a melhor pizza, o melhor amigo, o melhor isto e o melhor aquilo. O problema da sociedade do melhor é que nós estamos desaprendendo a viver com a diversidade, com a pluralidade. Por que escolher a melhor música se podemos conhecer muitas músicas boas? Por que escolhermos a melhor pizza se podemos experimentar pizzas diferentes e boas? Por que as coisas não podem ser simplesmente diferentes?

A competição e o egoísmo refletem-se em coisas pequenas do nosso cotidiano: desde o motorista do carro que não dá passagem, ao cara que fura a fila do cinema, o comportamento predominante é o “tenho que me dar bem e o outro que se dane”. É claro que uma sociedade fundada nestes valores não pode ter futuro. Isso pode virar uma guerra de todos contra todos. Precisamos resgatar a solidariedade e a noção de comunidade como valores sociais fundamentais. A solidariedade pode acabar com a corrupção, fruto da cultura do “se dar bem” a qualquer custo.


Qual o grau de participação dos políticos na manutenção da corrupção e desonestidade no país?

José Luiz Quadros de Magalhães: Não acredito que os políticos tenham uma responsabilidade maior na manutenção da corrupção. Os políticos não são a causa do problema. Como disse acima, a causa está, entre outros fatores, em uma sociedade que reconhece como valor supremo o sucesso pessoal representado pela acumulação de bens. É a sociedade do salve-se quem puder. Reparem que isso se reflete no seu dia-a-dia nas pequenas coisas: no trânsito, nas filas, no campo de futebol, no trabalho, na escola...


Ser honesto é exceção, o normal é ser corrupto? É possível ser honesto?

José Luiz Quadros de Magalhães: O normal não pode ser a corrupção pelo simples fato de uma sociedade não sobreviver muito tempo a esse valor negativo. O destino da sociedade corrupta é o caos. É claro que é possível ser honesto. E mais, é possível se transformar em uma pessoa honesta. E é muito mais tranquilo ser honesto.

Uma coisa importante é aprendermos com nossas experiências. Na difícil convivência nesta sociedade complexa, fazemos escolhas ou somos levados pela correnteza do cotidiano por caminhos difíceis e que não escolhemos. Nenhuma pessoa é estática, o que significa dizer que o que somos hoje não seremos amanhã. Somos seres históricos. Logo, todos erramos, fazemos escolhas erradas ou somos empurrados como gado a situações que não desejamos. O importante é que mesmo errando podemos aprender com os erros e nos transformar em pessoas melhores. Ninguém está condenado a ser a mesma pessoa. Logo, nunca podemos reduzir uma pessoa a um predicado. Uma pessoa será sempre uma pessoa, histórica e plural.


E “fazer negócio”, relações econômicas e comerciais não supõem um certo grau de desonestidade?

José Luiz Quadros de Magalhães: Outro dia recebi um folheto de propaganda de um curso no sinal de trânsito, em que estava escrito o seguinte: “Aprenda a vender o mesmo produto do seu competidor por um preço mais alto para o seu cliente”. Realmente questiono muito o valor passado por essa absurda sociedade da competição, na qual o que importa é a vitória, a qualquer preço.

Me pergunto até que ponto alguns cursos de administração e negócios não ensinam isso. Bom, o efeito deste absurdo está na crise em que vivemos e que se instalou de forma mais radical no final de 2008. O neoliberalismo reproduziu esses valores negativos desde a década de 1980 e agora começamos a sentir seus efeitos mais perversos. A crise foi gerada por esses valores que só podem resultar em ganância desenfreada. Para estabelecer relações econômicas ou fazer negócios não é necessário a desonestidade. A desonestidade é fruto da perda dos limites em uma sociedade que idolatra a competição e o sucesso.


Copiar trabalho da internet, não estudar... buscar sempre o caminho mais fácil não são sintomas de desonestidade na escola, entre os jovens?

José Luiz Quadros de Magalhães: Sim, isso é muito grave. O problema maior no campo da educação é que ela se transformou, nesta sociedade de consumo, em um produto, e o aluno em um consumidor. Isso é o fim da escola. A pior consequência é que o aluno, muitas vezes, acredita que o objetivo do curso é o diploma e não o aprendizado, que é uma grande ilusão. Ora, se o objetivo é o diploma, o professor, o aprendizado, o curso enfim, passa a ser um obstáculo para se chegar ao diploma. Perde-se a percepção de que é o aprendizado que importa. Assim, em uma típica e inútil relação de consumo o aluno compra a prazo seu diploma para depois pendurar na parede de sua casa. Existem cursos em que alguns alunos saem piores do que entraram, em outros alguns saem ilesos. O pior de tudo é quando encontramos alunos que não querem saber: em meio a tanta informação disponível vivemos o fenômeno da incuriosidade.


Há possibilidade de reverter esse quadro?

José Luiz Quadros de Magalhães: É claro que é possível reverter. Precisamos refundar nossa sociedade. Precisamos de solidariedade, fraternidade, diálogo, diálogo, diálogo...

Não precisamos de tantas bugigangas, de tanto consumo. Não precisamos do egoísmo e a competição deve ficar para a sadia disputa dos esportes, em que deveria ser mais importante a diversão.





Educar para a cidadania

Os escândalos que vêm sendo divulgados pela mídia são resultantes de um processo de negação da cultura política aos meios populares e reflete uma atitude de passividade das representações populares no sentido de educar nosso povo para compreender e analisar o processo político de maneira geral. O bom de tudo é que nossos jovens têm aumentado seu poder de crítica e reflexão e não são tragados assim pela alienação. Seu potencial precisa ser cada vez mais valorizado e estimulado, criando mecanismos de educação política para compreensão das ideologias e dos fatores que movem o mundo político.

O aprendizado político se dá com a prática, com o questionamento e com educação pautada no desenvolvimento de senso crítico e do poder de questionamento, sempre contido na suposta rebeldia adolescente. É preciso confiar no que o jovem diz, aceitar seus questionamentos e fazer sua educação cada vez mais voltada para uma visão do mundo a partir de um processo investigativo da sociedade em que vivemos.

A escola tem um papel fundamental nesse processo, pois é o lugar do conhecimento e do aprendizado. O ambiente escolar deve ser pautado numa visão democrática que se inicia a partir da delimitação da gestão do ambiente onde se desenvolve a educação. É importante que os educadores estimulem seus alunos a participarem do desenvolvimento da escola, criando sempre assembleias, grêmios e outros mecanismos de participação que oportunizem aos educadores e alunos a tão sonhada cumplicidade eivada de ações que colaborem para uma educação sempre motivada e incisiva no rumo da qualidade.

Existe um mundo novo nos ambientes da juventude e o fator informação é cada vez mais importante na formação adolescente. O interessante é filtrar essa informação e fazer dela algo a mais no processo de aprendizado crítico e questionador. Não podemos cair no relativismo de dizer que os jovens ignoram a política e que estão completamente alienados. O que eles não querem é essa política que aí está, uma política de privilégios, de jeitinhos, de acomodações e de desrespeito aos verdadeiros anseios populares. O desinteresse dos jovens pela política é resultado da forma como ela vem sendo praticada e desenvolvida pelos velhos políticos que não imaginaram que o mundo mudou e que a comunicação deixa sempre à mostra suas atitudes inadequadas e certamente malignas para grande parte de nosso povo.


Francisco Djacyr Silva de Souza,
professor da Faculdade Integrada do Ceará, da Faculdade Latino-Americana
de Educação e da Rede Pública e Privada de Ensino de Fortaleza, CE.
Endereço eletrônico: aouvir@ibest.com.br


Fonte: Mundo Jovem -
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