quinta-feira, 20 de maio de 2010

Pão e circo, por André Vanoni de Godoy*

A iminência de uma nova Copa cria a condição para que, uma vez mais, aflore uma conjunção de fatores muito favorável à repetição da história recente de nosso país. E, ao contrário do que muitos imaginam ou a propaganda oficial divulga, é uma história triste. Muito triste. Vamos a ela.

O Brasil tem sido cantado como um dos países de maior fortuna no conjunto das nações e, segundo contam alguns, nunca esteve tão bem econômica e socialmente. Os indicadores estariam aí para confirmar a prosa: crescimento projetado já acima dos 6%, abundante crédito ao consumidor, inflação controlada, investimentos públicos, capital internacional sendo despejado na Bovespa, pré-sal, 11 milhões de famílias atendidas pela bolsa oficial, 12 milhões de empregos gerados desde 2003.

De fato, são dados impressionantes. Mas qual é a verdade escondida por trás destes números? E quais são as estatísticas que importam realmente ao futuro da nação e que raramente são trazidas à luz? Vou ficar apenas em duas. A primeira: 50% da população não tem acesso a tratamento de esgoto. Esgoto. Esgoto! Santo Deus! Metade das famílias brasileiras despeja in natura – e não raro a céu aberto – suas fezes no mar, nos rios e lagos do país. A segunda: 75% dos brasileiros são analfabetos funcionais, isto é, têm dificuldade de leitura e, quando conseguem ler, não compreendem o que leram. É uma calamidade. É estarrecedor. Isto sem mencionar que, em pleno século 21, o país ainda enfrenta surtos de tuberculose, dengue, lepra, doenças típicas de países paupérrimos e, por óbvio, subdesenvolvidos. Então, como pode alguém intelectualmente honesto acreditar que o Brasil tem alguma chance de vencer como nação sem equacionar estes problemas? Respondo: não pode. Mas há os que, ignorando a realidade completa, professam o milagre brasileiro. São os cínicos.

E são esses mesmos que se encarregam de perpetuar-se na gerência do país, aproveitando-se da ignorância e da leniência do povo para mantê-lo num torpor convenientemente incentivado, dando origem a um paradoxo social pelo qual a sociedade é vítima e algoz dela mesma. E, convenhamos, a tarefa não é das mais difíceis. Basta dar-lhe, ao povo, pão e circo. E fica tudo como está. E a conjunção de fatores a que me referi no início? Pão e circo.

Pão. Onze milhões de famílias retiradas da miséria pela graça de um benefício cuja maior – e única – virtude, a de alimentar os pobres, se esgota em si mesma. Não produz nem ensina nada. Após quase oito anos de existência, o programa não criou condições para emancipar seus beneficiários. Não lhes deu dignidade. O que aconteceria se o programa fosse extinto? Provavelmente todos voltassem, no dia seguinte, à miséria da qual o governo finge tê-los tirado. Mas não importa, ninguém quer saber disso.

Circo. Copa do Mundo de Futebol na África em 2010. Copa do Mundo no Brasil em 2014. Olimpíadas no Brasil em 2016. Nos próximos seis anos, há diversão garantida. E dinheiro também (o mesmo que falta para escolas, hospitais, presídios e estradas), para construir estádios e maquiar as cidades-sedes dos jogos. Dinheiro que irá parar no bolso, ou nas meias, ou nas cuecas, ou até em lugar mais prosaico, dos corruptos que, perdoados pela população, estão em êxtase pelo anúncio de tantas e profusas oportunidades a permitir o livre exercício de suas maiores habilidades. Mas o que isso importa? Vamos construir coliseus e alimentar a turba! Pão e circo!

E, assim, uma vez mais, menosprezamos nossas mazelas, rimos de nossas carências e nos preparamos para deixar tudo como sempre esteve. Às custas do povo. Às custas de Roma. Dane-se a pátria de chuteiras.


*Advogado
Fonte: Jornal Zero Hora
imagem em: bancadadirecta.blogspot.com/2009/03/o-tema-e- 

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Educação, Copa e eleição – tudo a ver!, por Odoaldo Ivo Rochefort Neto*


Nosso país recebeu em 2010 várias notícias preocupantes em relação a uma das áreas estrategicamente decisivas para o seu desenvolvimento, a educação. Quase metade dos alunos que prestaram o Enem em 2009 teve notas inferiores à média, em todas as áreas avaliadas. No ranking do Índice de Desenvolvimento Educacional da Unesco, entre 128 países o Brasil ocupa a humilhante 88ª posição. Pior colocado que nações menos desenvolvidas do que nós. Sem educação, não haverá desenvolvimento. Uma estrutura precária de ensino será fonte de inevitável atraso econômico e social.

É preciso reformular imediatamente a formação de nossos professores. Infelizmente, esta categoria está entre as menos valorizadas em termos salariais e os cursos universitários são os menos procurados, a ponto de não abrirem novas turmas de licenciatura por falta de alunos inscritos. Enquanto isso, na Coreia do Sul e na Dinamarca, a licenciatura rivaliza com cursos de Medicina e Direito. Cabe ao poder público e à sociedade brasileira reconhecer e valorizar os desafios que os professores enfrentam diariamente. No Brasil, nem descontar do Imposto de Renda o que é investido na educação de nossas crianças podemos. Mas cirurgia plástica pode.

É fato que o dinheiro público é utilizado por decisões políticas. As obras do PAC estão aí para comprovar isso. Agora, eu lhes pergunto, em quanto tempo construímos uma estrada ou uma hidrelétrica. Alguns meses, talvez um ano! E quanto tempo demoramos para formar uma criança em um profissional qualificado? Quinze, 20 anos? Estamos diante de uma situação que não se transformará de uma hora para outra. Educação é uma emergência nacional. Se a questão educacional não for resolvida, as chances que se abrem para o Brasil poderão ser enfraquecidas ou postergadas. Como diz uma letra dos Engenheiros do Havaí: “Vivemos num país sedento num momento de embriaguez”.

É ano de Copa do Mundo e uma coisa me vem logo à cabeça. Como um país inteiro para para assistir a um jogo da Seleção, grita em uma só voz, e não vibra com a mesma intensidade para pedir mais saúde e educação, o fim da impunidade, acabar de vez com a corrupção, o fim da violência. Alguém pode me explicar isso? É ano eleitoral. Se você perguntar por aí, muita gente sabe a escalação completa da Seleção, a posição que cada jogador ocupa, em que times atuaram etc. Agora, eu pergunto: você sabe quem são todos os candidatos que concorrem à Presidência da República? Qual é o partido de cada um? O que eles fizeram no passado? Em quem você votou na última eleição?

É propício que se renove o debate e repensemos nossas ações enquanto sociedade civil. Tenho consciência de que cada um de nós nasceu para fazer história. Somos capazes, sim, de nos reunirmos para assistir à Seleção e somos capazes, sim, de construir um Brasil melhor e mais justo para todos.


*Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul – Campus Porto Alegre

Fonte: Jornal Zero Hora

sábado, 8 de maio de 2010

A metade do caminho, por J. R. Guzzo

 "Basta pensar durante cinco minutos sobre certas realidades paraconstatar o disparate que é considerar o Brasil atual um país bem-sucedido"

Está entre os maus hábitos permanentes do Brasil a ilusão de achar que é possível conviver, sem maiores prejuízos, com a combinação com a qual tem convivido até hoje – uma geleia geral que junta a incompetência da máquina pública na execução dos seus deveres, a indiferença de um eleitorado sem interesse, paciência ou informação para acompanhar o que os políticos fazem com o seu dinheiro e os vícios de um sistema político que está entre os piores do mundo. O sentimento da maioria é que não compensa esquentar a cabeça com esse vale de lágrimas, quando o dia a dia tem assuntos mais urgentes para o cidadão resolver. Mas o pouco-caso com a realidade, infelizmente, sempre cobra um preço alto. Não se trata de uma cobrança que vai ficar para o futuro, como frequentemente se imagina. O preço já está sendo pago há muito tempo, e tende a ficar cada vez mais alto. Basta ver tudo de que o Brasil de hoje precisa com urgência, e não tem – e tudo o que tem de sobra, e de que não precisa.
Há um bocado de esperança, diante dos avanços reais que o país tem feito, de que, com perseverança, paciência e uma atitude mental afirmativa, dá para ir tocando as coisas; um dia, lá na frente, o grosso dos problemas estará resolvido. Existem fatos de sobra para demonstrar que o Brasil, neste momento, está muito melhor do que já foi em qualquer outra época do passado. Está melhor em questões essenciais, não em aparências, e está melhor de verdade, não porque quem diz isso é a propaganda boçal dos governos – até porque boa parte desse progresso não foi feita pelas autoridades constituídas, mas apesar delas. O problema é outro. Podemos ter crescimento de 6% ao ano, reservas de 250 bilhões de dólares e mais uma promoção no rating das agências internacionais que avaliam nossa capacidade de pagar dívidas. Podemos entregar, como acaba de ocorrer, 25 milhões de declarações de renda à Receita Federal. Podemos nos firmar como a sétima ou a oitava maior economia do mundo. Podemos ter e ser mais uma porção de coisas, mas vamos continuar sendo um país subdesenvolvido enquanto se mantiver essa situação em que tão pouca gente, na população brasileira, tem acesso real a uma vida efetivamente melhor.
Basta pensar durante cinco minutos sobre certas realidades para constatar o disparate que é considerar o Brasil atual um país bem-sucedido, quando 50% da população, por exemplo, não é servida por rede de esgotos – e, principalmente, quando uma calamidade desse tamanho é tratada com a maior naturalidade do mundo pelos outros 50%, em especial os que têm a obrigação de resolver o problema. O assunto, na verdade, é visto como uma tremenda chatice. Nem poderia mesmo ser diferente, quando se verifica que ainda não apareceu, em toda a história política do Brasil, um único homem público bem-sucedido que tenha elegido como prioridade em sua carreira a luta por instalação e tratamento de esgotos. Só um débil mental seria capaz de agir assim; pela sabedoria política em vigor, obra que não se vê é obra que não existe. Estamos avançando, é claro. Em 510 anos já se conseguiu chegar à metade do caminho; um dia, se Deus quiser, todos estarão atendidos. Mas a única pergunta que interessa, nessa e em outras questões do mesmo tipo, é: quando? Para os quase 100 milhões de brasileiros que não têm esgoto, faz toda a diferença.
Não se trata de uma questão isolada. Recentemente, num artigo que es-creveu para VEJA, o professor Gustavo Ioschpe observou que só 25% da população brasileira alfabetizada está em condições de entender um texto como aquele. Não lidava, ali, com nenhum pon-to de trigonometria avançada; era apenas uma página de revista, escrita em português corrente e que deveria ser acessível a todos os que completaram os primeiros oito anos de escola. É uma excelente notícia para os políticos, a começar pelos que mandam no atual governo – vivem se gabando de que o "povão" não lê nada do que a imprensa escreve e, portanto, as críticas que recebem não têm efeito nenhum. Mas, para os 75% que não conseguem entender o artigo do professor Ioschpe, essa situação é um desastre. É para eles que estão reservados, no Brasil que cresce a 6% e tem "grau de investimento", os empregos com trabalho mais pesado, os piores salários e, em vez de carreiras profissionais, ocupações sem futuro algum – isso quando conseguem emprego, num mercado em que competem em desvantagem cada vez maior.
Dá para ir levando assim, é claro. Mas, como informa o artigo que tão poucos brasileiros conseguem ler, não existe nenhum país desenvolvido no mundo com o abismo social do Brasil. 

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A profissão do milênio, por Paulo Brossard*

Como cidadão e cidadão que desde estudante mourejou a atividade política, ao longo da qual veio a ser investido em várias situações com distintas responsabilidades, vendo coisas boas e coisas más, contemplo o ambiente atual na esperança de verificar progressos em nossos costumes. Não quero muito e me contento com pouco. Mas confesso que, antes mesmo do início da campanha política, sou constrangido a reconhecer alguns dados que não me parecem auspiciosos.

Já falei no primeiro e mais grave deles e este já consumado, e o que mais o agrava, praticado por quem deveria ser o “primeiro magistrado da nação”, segundo a expressão consagrada. Sem permissão da lei, o presidente da República escolheu unipessoalmente sua eventual sucessora, fê-la candidata, entronizou-a no posto, e passou a promovê-la, como se tudo decorresse na mais regular das regularidades. Não ficou aí. Não é segredo para ninguém, de algum tempo para cá, mais importante que seus eventuais méritos a legitimar a pretensão de governar o país, seu bom nome, competência, integridade, experiência, ilustração, benemerência, e o mais que deve possuir, o importante, sem contraste, está reservado aos seus marqueteiros, barbarismo que passou a ter foros de cidade. O expediente não nasceu hoje, mas retrata uma deterioração no manejo da atividade política que facilmente vai contaminar o eventual vitorioso. O marqueteiro começa a cuidar da estampa, o cabelo, o penteado, a roupa, a elegância, agora a moradia (elemento de que se não cogitava), a voz, a dicção, de modo a refinar os sinais de sua personalidade. Como quem prepara um produto a ser vendido, que passe a ser do gosto do mercado, ainda que passe a ser pessoa diferente da que tinha sido até a transfiguração milagrosa. Tudo. Até a cabeça? Não sei. Pode ser que sim, pode ser que não. Por que não?

E o mérito da escolha, o conteúdo da eleição, que é tudo, onde fica se a seleção do governante ou do legislador passa a ser conduzida por modismos enganosos? Em outras palavras, busca-se um estadista ou um pisa-verdes simpático, agalanado, capaz de enganar o povo? Terá havido progresso nesse passo inicial de passar gato por lebre?

Contudo, como o ideal é ganhar, ainda que enganando, antes mesmo que a campanha eleitoral não esteja legalmente encetada, e nem mesmo os candidatos legalmente escolhidos, a propaganda já começou e meio mundo ficou sabendo que, em propaganda da candidata do presidente, como se fosse ela, foi colocada uma esbelta artista, sem dificuldade identificada como não sendo a candidata. Verificada a trapaça, houve pedido de desculpas. Será decente esse critério a regular uma campanha à presidência da República? Ou muito me engano, ou o processo não recomenda os marqueteiros nem a candidata a que servem.

Não é tudo. No mesmo dia em que o presidente da República foi punido pela segunda vez com penalidade pecuniária, por propaganda eleitoral ilegal, sem incomodar-se com a pecha, compareceu com sua candidata a sindicato e lá repetiu o que vem fazendo. Sindicato não pode virar centro partidário, nem apoiar candidatos. Mas foi o que aconteceu em São Paulo, não foi nas grotas do fundo do país. Com todas as vênias, não me parece sejam louváveis os métodos preferidos e por quem?

Ainda mais. Segundo pesquisa, fartamente divulgada pela grande publicidade, a candidata do presidente emparelhava com o ex-governador de São Paulo, quando este, desde o início acusava vantagem, pesquisa que, por requisição da Justiça Eleitoral, a requerimento de um partido, revelou ser incorreta e, portanto, inidônea, para não dizer fraudulenta, a indicar que a campanha eleitoral começa adulterada, a comprometer a seriedade de uma eleição presidencial. Quem faz isso faz qualquer coisa, seja lá o que for. E isso não é bom para ninguém, especialmente é mau para a nação brasileira. Uma coisa me parece inegável, de progresso não se trata. Será preciso dar-lhe nome? Para que, se o padrinho é bom e bons os marqueteiros, é o que basta. Assim se fabricam estadistas...


*Jurista, ministro aposentado do STF

Fonte: Jornal Zero

sábado, 1 de maio de 2010

A língua do google

A tradução quase instantânea de textos para 52 línguas é apenas o primeiro passo rumo a um comunicador universal em que o idioma deixa de ser barreira e passa a ser o portal do grande encontro das culturas


Jadyr Pavão Júnior


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As diferenças de idioma são um divisor da humanidade. Há dois caminhos para contornar essa barreira. Num deles, busca-se um retorno à linguagem única que, segundo a Bíblia, existia antes da Torre de Babel. Ao longo da história, algumas línguas de fato procuraram desempenhar esse papel. Por exemplo, o latim, na Antiguidade, ou o inglês, nos dias de hoje. Línguas artificiais como o esperanto, criado no século XIX pelo polonês L.L. Zamenhof, também se candidataram a realizar essa tarefa. O outro caminho é o da tradução universal. Em princípio, seria coisa de ficção científica. O mais insólito modelo de tradutor universal aparece no livro O Guia do Mochileiro das Galáxias, dos anos 70: um peixinho é introduzido no ouvido do protagonista e verte frases alienígenas para o inglês. Na série Jornada nas Estrelas, a tecnologia entra em cena e um dispositivo permite a conversa não somente entre "terráqueos", mas entre habitantes de diferentes planetas. Pois bem: como acontece com frequência, a ficção científica não estava lidando com o impossível, mas apenas antecipando o futuro. A tecnologia já está avançada na criação de um tradutor universal. O sistema mais eficiente opera nos computadores do Google, o gigante da internet. Hoje, ele permite a tradução instantânea de textos escritos em 52 idiomas. Para o leitor, é como colocar-se diante de uma biblioteca infinita e descobrir que todas as publicações estão em português. Estima-se que em dez anos já sejam 250 as línguas contempladas. E, nesse ponto, a inclusão de aplicativos de tradução simultânea em computadores e telefones celulares permitirá que bilhões de pessoas se entendam – sem jamais ter de abandonar a própria língua.
Por trás do Google Tradutor está o conhecimento acumulado em inteligência artificial (I.A.), ramo da computação que se dedica ao desenvolvimento de modelos e programas que produzem nas máquinas um comportamento "inteligente". Nascida nos anos 40, a área produziu experimentos famosos como o robô Eliza, software que simulava diálogos reais na década de 60, e o supercomputador Deep Blue, da IBM, que em 1997 derrotou o campeão russo Garry Kasparov em uma partida de xadrez. O "cérebro" da máquina podia analisar cerca de 200.milhões de jogadas por segundo na busca do xeque-mate. O primeiro estágio da tradução universal – a de textos – já atingiu na internet um nível que linguistas e especialistas em inteligência artificial classificam como avançado. Isso quer dizer que, embora os erros de tradução da ferramenta sejam perceptíveis, os textos que ela apresenta permitem a compreensão do assunto de que eles tratam.
O funcionamento do tradutor do Google remete à Pedra de Roseta, o bloco de granito de 1,20 metro de altura que foi encontrado pelo exército de Napoleão, no século XVIII, e serviu de chave para a decifração dos hieróglifos egípcios. A Pedra traz inscrições de um mesmo texto na antiga língua do Egito e em grego. No século XIX, coube aos estudiosos Thomas Young e Jean-François Champollion relacionar os termos dos dois idiomas para desvendar a língua dos faraós. De forma análoga, os computadores do Google trabalham com pares de textos em línguas diferentes e calculam a probabilidade de palavras de uma delas corresponderem a termos da outra (confira o funcionamento). Com base nesses cálculos, o sistema é capaz de, em menos de um segundo, montar textos em 52 línguas, cada vez que um usuário o requisita.
O tradutor do Google está à frente dos rivais. Em pesquisas patrocinadas pelo governo americano, ele supera com frequência ferramentas de outras empresas e universidades. "Ele também é reconhecido como o melhor entre os sistemas comerciais", diz David Yarowsky, professor de ciência da computação da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Isso significa sobrepujar os rivais Bing Translator, da Microsoft, e Babel Fish, do Yahoo!. "Hoje, a potência da ferramenta está relacionada ao tamanho de seu banco de dados. E também ao uso de supercomputadores, com sua imensa capacidade de processar informações", explica Helena Caseli, pesquisadora do Laboratório de Linguística Computacional da Universidade Federal de São Carlos. Se são esses os fatores determinantes, é certo que o tradutor vai evoluir. O aumento na capacidade de processar informações dos supercomputadores é garantido pela Lei de Moore – que postula que a capacidade dos chips dobra a cada 24 meses. O banco de dados do Google também cresce continuamente. Ele começou a ser formado em 2006, com textos oficiais da ONU vertidos para seis idiomas. Em seguida, a empresa recorreu a documentos bilíngues de arquivos públicos. Finalmente, mergulhou na internet. Hoje, seus próprios usuários ajudam a ampliar o banco de dados sugerindo traduções alternativas àquelas que lhes são apresentadas. "Há, no entanto, certo limite para essa abordagem", diz Miles Osborne, pesquisador da Universidade de Edimburgo, na Escócia, que trabalhou no projeto do Google. É por isso que vem sendo estudada a inclusão de regras gramaticais no programa: além dos algoritmos, ele usaria essas regras para compor textos mais fluentes. Hoje, as traduções invariavelmente contêm tropeços de gramática. Assim mesmo, quem se detém em uma página estrangeira, esteja ela escrita em mandarim, africânder, vietnamita, japonês ou hindi, já sabe ao menos sobre o que se fala ali. "Há cinco anos, isso era impossível. Daqui a cinco anos, teremos mais fluência", afirma David Yarowsky.
À medida que os tradutores avançarem, seus impactos deverão se espalhar pelas mais variadas áreas. No campo acadêmico, por exemplo, o avanço será dramático. "Em algumas áreas, como ciência e tecnologia, as versões automáticas poderão ser até melhores do que as feitas por humanos, pois, para nós, é muito difícil guardar detalhes de temas específicos", diz Yarowsky. Considere-se que atualmente, nos campos de ciências, tecnologia, finanças e administração, 90% do conteúdo de alta qualidade está em inglês, e a importância dos tradutores automáticos para milhões de estudantes e profissionais ao redor do mundo se torna clara. Yarowsky também aponta frutos na economia: "Será mais fácil vender produtos e serviços ao exterior, com a eliminação de custos com tradução de manuais técnicos, material promocional e e-mails". Atualmente, turistas já se beneficiam da tecnologia na hora de escolher destinos de viagem sem levar em conta a língua local, uma vez que ferramentas como a do Google estão disponíveis em celulares. Há outros dispositivos portáteis que fazem a conversão voz-texto ou texto-voz. Soldados americanos enviados ao Afeganistão já testaram tal aparelho, que dispara mensagens sonoras escolhidas pelos militares na língua local. "É a chance de pessoas de todas as partes do mundo saberem o que as demais pensam. Assim, suas diferenças podem ser minimizadas", diz Yarowsky. "Eu não sei o que um garoto de Bagdá pensa sobre os Estados Unidos, mas gostaria de saber." O Google já colocou seu arsenal também à disposição de outras ferramentas. Além de verter páginas da web, seu know-how na área traduz documentos apresentados por usuários, chats de texto via Google Talk e até converte legendas de vídeos no YouTube. Para conectar línguas e mentes via celular, precisará agregar ao sistema o reconhecimento de voz, desenvolvido por várias empresas ao redor do mundo. "A tradução voz a voz é incrível, e nós adoraríamos realizá-la", reconhece Nate Tyler, relações-públicas do Google internacional. É mais do que isso. E, embora a empresa tente despistar, o mercado espera dela a ferramenta para a próxima década.
Laílson Santos

Laura Guzman
A americana de 20 anos está há quatro meses em São Paulo, onde realiza um intercâmbio universitário. Ela recorre ao tradutor automático para dirimir dúvidas na hora de escrever e ler artigos extensos em português
"Eu me sinto segura para usar o idioma, mas vez ou outra as dúvidas aparecem"

A linguagem cotidiana já começa a ser desbravada pelos tradutores automáticos. A frase "Cê vai lá né?", por exemplo, recebe uma tradução bastante adequada no Google Tradutor: "You going there right?". A própria empresa reconhece, contudo, que sua máquina tem um limite claro: a literatura, sobretudo aquela que subverte a gramática e abusa da ironia, fazendo com que uma mesma palavra possa ter vários significados. "Se você tentar traduzir poesia pelo sistema, vai receber um novo tipo de poesia", brincou, durante uma apresentação, o pai da ferramenta do Google, o alemão Franz Josef Och. Mas isso não é demérito nenhum. Há uma infinidade de estudos literários que falam da "impossibilidade da tradução" – ou que, ao menos, lembram o velho adágio "Traduttore, traditore" ("Tradutor, traidor"). "Não existe efetivamente tradução perfeita entre línguas. Cada uma delas tem estrutura e recursos idiomáticos próprios, intraduzíveis. Você pode convertê-los em termos semânticos, mas não analíticos", diz Jacó Guinzburg, tradutor de francês, inglês, alemão, iídiche e hebraico. "Mas é claro que existem alguns trabalhos excelentes. É o caso da versão de As Minas do Rei Salomão feita por Eça de Queiroz: em inglês, é uma obra de segunda, mas se tornou primorosa em português."
Com o avanço dos sistemas de tradução de línguas por computador, a exigência de aprender um idioma estrangeiro poderá ser abalada. Estudo da empresa de RH Catho Online mostra que o salário médio do brasileiro que domina o inglês e o espanhol é em média 125% superior ao de trabalhadores que não falam esses idiomas. Mas, se a tecnologia evoluir como se espera, a questão terá de ser revista: valerá a pena investir mais de 50 000 reais, custo de um curso completo de inglês de primeiro nível, se em tese for possível contar com as máquinas? "Quando têm a oportunidade de escolha, as pessoas preferem se expressar no idioma materno", diz o linguista britânico David Crystal, estudioso das relações entre língua e internet. "A eficiência dos sistemas de tradução poderá provocar certo desinteresse pelo aprendizado de idiomas estrangeiros." Mas seria um erro abandonar de vez o hábito de aprender línguas. O italiano Luciano Floridi, filósofo da informação, lembra que conhecer um idioma é uma experiência insubstituível, um mergulho em outra cultura. "Há palavras intraduzíveis: se você quer falar sobre saudade, tem de usar o português", exemplifica. Isso, contudo, não demove o filósofo da posição de entusiasta da tradução digital, que para ele ocorrerá em um regime de perdas e ganhos. "Imagine que eu nunca tenha ido ao Brasil e certo dia vá a um restaurante típico em Londres: a receita é brasileira, mas a linguiça é inglesa. Ou seja, não é o mesmo que ir ao Brasil, mas é melhor do que nada."
Bruno Magalhaes/Nitro

Felipe Carvalho Zulato
Navegar pelas redes sociais é tarefa do relações-públicas de 23 anos, que vive em Belo Horizonte. Antes de descobrir o tradutor, conferir as páginas de sites japoneses era frustrante
"As traduções ainda pecam na concordância, mas ao menos me permitem avançar no trabalho"

Se tivessem surgido mais cedo, como ansiava o homem desde o princípio, as ferramentas de tradução automática bem poderiam ter sido de grande ajuda em momentos cruciais da história. Durante a Batalha de Cajamarca pela conquista do Peru, em 1532, coube a um jovem nativo chamado Felipillo mediar o encontro entre os espanhóis, comandados por Francisco Pizarro, e os incas. Por má-fé ou não do tradutor, o rei Atahualpa foi levado a entender que os espanhóis queriam lhe impingir a condição de vassalo do rei espanhol. A negociação foi um fracasso e precipitou a guerra, ocaso inca. Quatro séculos depois, outro entrevero. Em 26 de julho de 1945, as forças aliadas apresentaram a Declaração de Potsdam, um ultimato que dava a Tóquio duas alternativas: rendição incondicional ou destruição total. Dois dias depois, o primeiro-ministro Suzuki Kantaro disse aos jornais de seu país que a declaração não tinha "nenhum valor", acrescentando à frase seguinte o termo mokusatsu – que pode assumir os significados distintos de "ignorar" ou "silêncio". O jornal The New York Times estampou em sua primeira página: "Japão rejeita ultimato aliado de rendição". Tradutores afirmariam mais tarde que melhor seria dizer que os japoneses "silenciaram". As bombas atômicas caíram sobre Hiroshima e Nagasaki sete e dez dias depois, respectivamente. Há dúvidas sobre o efeito que outras traduções poderiam exercer nos dois episódios. Mas o fantasma da diferença linguística perpassa a história. Agora, com os tradutores automáticos, o homem tem a chance de derrubar, com a ajuda da tecnologia, a barreira que Deus, segundo a tradição bíblica, ergueu com a Torre de Babel.


Ana Rojas

Nicholas Ostler
O especialista britânico em história das línguas enxerga no tradutor do Google um aprimoramento da globalização, com novas oportunidades para o indivíduo.
E sentencia: o inglês será a última língua franca
"As pessoas se darão ao luxo de falar com outras culturas usando o próprio idioma"

Peter Dasilva/The New York Times

Franz Josef Och
O alemão que chefia o time de tradução do Google, diante da Pedra de Roseta, que no século XIX ajudou a decifrar os hieróglifos egípcios e serve de modelo ao sistema automático do gigante de buscas. O tradutor moderno alia números e palavras, matemática e linguística para converter idiomas
"No futuro, teremos muito mais. A máquina será capaz de quebrar barreiras, levando a informação aonde quer que as pessoas precisem dela"
Lia Lubambo

David Yarowsky
O professor de ciência da computação da Universidade Johns Hopkins aposta no poder de aproximar pessoas da ferramenta de tradução. A cada língua colocada à disposição na internet, surgem chances de aumentar a troca de ideias e diminuir as diferenças culturais
"Eu não sei o que um garoto de Bagdá pensa sobre os Estados Unidos, mas gostaria de saber"
Suzete Sandin /Tempo Editorial
Vinício Fornasari
Aos 52 anos, o empresário da construção civil usa o Google Tradutor a partir de Florianópolis para checar minúcias de contratos firmados com companhias da China, Japão e Turquia, além de prospectar oportunidades pela internet
"A ferramenta tem ajudado muito nas negociações"

A ficção chegou primeiro

A literatura e o cinema inventaram dispositivos – ou geringonças – capazes
de simular a comunicação entre línguas muito antes dos tradutores automáticos
Babel fish
Colocado no ouvido, o peixe de O Guia do Mochileiro das Galáxias, dos anos 70, absorve energia mental e libera ondas telepáticas: assim, é claro, o tímpano do anfitrião entende qualquer língua.


Divulgação
Tradutor Universal
O dispositivo da saga Jornada nas Estrelas, que surgiu nos anos 60, foi uma espécie de precursor do modelo do Google: usa cálculos e recorre a um banco de dados para comparar idiomas. Uma diferença: pode ler ondas cerebrais.


The Pictre Desk
Robô C-3PO
O androide medroso e falador de Star Wars, criado por George Lucas nos anos 70, é o tradutor mais culto da ficção: é fluente em 6 milhões de idiomas. E ainda pertence ao grupo de robôs diplomáticos.



















































Com reportagem de Daniel Jelin, Manuela Franceschini e Nathalia Goular

Fonte: Revista Veja
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