quarta-feira, 8 de julho de 2009

O escândalo da sinceridade - por Martha Medeiros

Pode parecer apenas mais uma frase de efeito, mas eu a tomo como filosófica. É do dramaturgo, ator e escritor Domingos Oliveira, a quem tanto admiro. Ele diz: “A única coisa que ainda escandaliza hoje em dia é a sinceridade”.

Abro o jornal e leio sobre supostos escândalos políticos (federais, estaduais) que me mantêm apática, pois é tanta enrolação, disputa de poder e trocas de favores, que o máximo que consigo sentir é desprezo e desinteresse. Escandalizada, não fico. O escândalo pressupõe uma novidade. E, hoje, a única novidade está em ser sincero. O vice-presidente José Alencar, em função de suas inúmeras cirurgias, passou a ser a avis rara da política nacional, conquistando simpatia não por seus atributos profissionais, que já nem costumam ser avaliados, mas por ser um sujeito que parece real.

A sinceridade não é anestésica, não estimula reticências, não teatraliza as relações humanas, não debocha da credulidade alheia, não falsifica impressões. A sinceridade é de vanguarda. É tão soberana, que emudece a todos. É tão inesperada, que impede retaliações. A sinceridade é o ponto final de qualquer discussão.

Quer deixar alguém perplexo? Fale a verdade. Aja com verdade.

Saindo da esfera política e passando para o reino do entretenimento: o velório de Michael Jackson se transformou num show por uma questão de coerência com a vida espetaculosa do cantor. Tudo relacionado a Michael virava um fenômeno midiático. O que ele tinha de mais sincero era seu extraordinário talento musical, que nos últimos tempos foi ofuscado por um rosto de mentira e uma vida pateticamente construída em um parque de diversões. Os fãs de Michael Jackson estão sofrendo de verdade? Não se sofre pela ausência daqueles com quem não tivemos relação pessoal. Sentimos compaixão, sentimos respeito pela trajetória artística, homenageamos quem fez a trilha sonora de uma fase da nossa vida, mas sofrimento mesmo devem ter sentido aqueles que adquiriram ingressos para o funeral e depois tentaram revendê-los pela internet por um valor superfaturado. São os cambistas da tristeza showbiz.

A dramatização de certas atitudes virou a normalidade operante. Ninguém mais acredita no que os outros dizem, tenta-se apenas ler as entrelinhas, que é por onde pode escapar algo verdadeiro. Por outro lado, enquanto tantos se esforçam para parecer o que não são, as pessoas consideradas sábias admitem serenamente que de nada sabem. O “não sei” passou a ser uma comovente surpresa. Os melhores filmes, as melhores peças, os melhores livros tratam sobre a nossa ignorância, não sobre a nossa genialidade.

Admitir fraquezas, reconhecer erros, viver de acordo com a própria essência, buscar ajuda nas horas difíceis, voltar atrás, sentir apenas o que se sente de fato, valorizar a discrição, conviver bem com a relatividade de tudo. Extra, extra! Eis aí os escândalos deste novo século.

Fonte: Jornal Zero Hora - nº16024 - 8 de Julho de 2009.

6 comentários:

  1. Relativamente à corrupção: alguma vez terá sido melhor? Será que no passado as pessoas, nomeadamente os políticos, se comportavam de um modo mais ético?
    Diz-se com frequência: "já não há valores", "a honestidade é uma coisa do passado", etc.
    Duvido muito que seja assim. Acho que nessas afirmações existe uma certa persistência do mito da Idade de Ouro.
    Nunca ouve uma Idade de Ouro ética. O que se passa é que actualmente há mais informação, fala-se muito de corrupção e antes não se falava. Por outro lado, há coisas que hoje são vistas com desaprovação e antigamente não havia sequer a consciência que eram erradas (como por exemplo o tráfico de influências). Finalmente: com a democratização das sociedades mais pessoas passaram a estar próximas do poder, pelo que as oportunidades de corrupção aumentaram.
    Mas nada disso significa que antigamente havia mais ética. Atenção: não estou dizendo bem dos tempos actuais, mas sim a sugerir que as coisas sempre foram más (no que diz respeito ao aspecto em apreço).

    Quanto ao MJ e ao triste Carnaval do seu funeral. Aí está uma novidade dos tempos actuais. Às vezes parece que a sociedade inteira é um episódio do Big Brother!

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  2. Olá, Marise,

    Como sempre, Martha Medeiros esbanjando sabedoria. A sinceridade é a maior arma que podemos ter. Mas ela se torna mais eficazmente poderosa quando somos sinceros com nós mesmo.

    Aproveito para dizer que voltei a blogar. Quando tiver um tempinho, acesse meu blog.

    Abraços.

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  3. Carlos,

    Concordo com você que "o mal sempre existiu", não era tranparente ( ainda havia um certo cuidado, receio). O mais triste é perceber que as pessoas não estão nem preocupadas com o mal, a corrupção, tudo é normal. Está faltando valores, esses sim foram perdidos.
    E quando você é sincero, você é anormal, um excluído.
    Abraços,
    Marise.

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  4. Olá Valdeir,
    Fico muito feliz com a sua volta,senti a sua falta. Um feliz retorno e muito sucesso!
    Concordo com você que a sinceridade é a maior arma que temos, e que o mais importante é sermos sinceros conosco. O problema é que quem é sincero, é considerado um anormal. A sinceridade não é valorizada, mas quem souber manipular e jogar melhor é que tem valor.
    Abraços,
    Marise.

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  5. Hum... Estão faltando valores ou há muitos valores diferentes e as sociedades estão menos homogéneas que antigamente e com menos padrões e referências comuns?

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  6. Carlos,
    Os valores são diferentes, faltam com certeza padrões e referências. É que os valores de uma época não servem para outra.... O que há de errado nos nossos valores e na nossa época?
    Procuro ver o mundo com olhar de estranhamento, me colocar no lugar do outro, mas não é fácil, talvez porque eu já tenha feito as minhas escolhas e eu vejo meu aluno perdido, não sabe o que escolher, para onde ir... e eu não posso escolher por ele.
    Será falta de opção?
    Falta o quê? Tudo...
    Esse seu questionamento me deixou intrigada, estou remoendo meus pensamentos, gosto de pensar.

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