sexta-feira, 17 de junho de 2011

O que, afinal, é uma guerra?, por Luli Radfahrer

 Se entrarmos em uma zona de conflito digital, seremos capazes de percebê-la?
Uma vez fui a trabalho para o Líbano. Lá encontrei uma Beirute já restaurada depois de 18 anos de guerra. Algumas cicatrizes deixadas por rajadas de metralhadoras em paredes diziam que a situação tinha sido séria. Procurei uma forma de abordar o assunto com meu anfitrião, que tinha crescido na cidade durante boa parte do conflito. Como era viver em guerra?
Sua resposta me surpreendeu. Como ele havia crescido dentro desse ambiente, levou um tempo para perceber que a situação poderia ser diferente. Ainda mais porque morava em um bairro afastado, pouco atingido, e escapou da convocação para o exército. Sua relação com a guerra era distante, vinda de dois primos soldados e um meio parente que teve a propriedade destruída por minas de estilhaço, mas os danos foram só materiais.
O resto da situação contada por ele mais parecia o relato de um grande incômodo: trânsito, inflação,problemas de infraestrutura, blecautes e bloqueios militares para verificação de documentos.
É claro que isso é opinião pessoal de alguém sortudo a ponto de passar ileso por mais de 15 anos em um país em guerra civil. Mas, antes de considerá-lo alienado, vale notar que nosso comportamento com relação às mazelas das cidades em que vivemos não é tão diferente. O que é necessário para identificar um grave problema social e mobilizar toda a sociedade para combatê-lo? Em outras palavras, se entrássemos em guerra hoje, o que precisaria acontecer para que fôssemos capazes de identificá-la?
A preocupação pode parecer um despropósito para quem vive no país exportador de alegria, sem conflitos no horizonte. mas não me refiro a essa pátria. Minha dúvida está na outra nação, global, que todos habitamos: a internet. Nela, grandes distâncias e ideologias estão a poucos cliques de separação. À medida que a rede se populariza, os vínculos se multiplicam e se fortalecem, dando origem a conexões nunca imaginadas.
Um bom exemplo disso foi o Stuxnet, um vírus projetado para invadir usinas nucleares iranianas e interferirem seus processos. Obra-prima de engenharia cibernética, ele se camuflou e ficou dormente, e assim foi transmitido pela rede até chegar às máquinas certas, nos lugares certos, na hora certa .Daí acordou e fez o que tinha de fazer. Isso é que é bomba inteligente. Por enquanto são poucos os países capazes de criar armas assim (pelo alvo e pela sofisticação da tecnologia, não é difícil adivinhar quem criou esta). Porém, ao contrário da tecnologia nuclear, não há restrições para que esse tipo de conhecimento técnico seja cada vez mais acessível. Quando isso acontecer, o que fazer? Como diferenciar ações criminosas de declarações de guerra?
O que é necessário para promover o caos hoje? Derrubar redes sociais e mecanismos de busca? Invadir sistemas de e-mail? Roubar dados de crédito? Pois é, tudo isso já aconteceu. Várias vezes. Até agora, boa parte das ações foi desorganizada, mas elas têm sido cada vez mais frequentes.
Hoje, quando todos habitamos a "nuvem", em diferentes graus de extensão, somos cada vez mais cidadãos globais. Como tal, sujeitos e vulneráveis às ameaças globais. A única forma de um território ser neutro, independente ou pacífico é estar desconectado, à margem do progresso tecnológico. e isso ninguém quer.

folha@luli.com.br

Fonte: Folha de São Paulo - 15 de junho de 2011.
Imagem: Sempre Guerra
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