"A burrice faz parte das doenças que não têm cura; por isso mesmo, produz efeitos em qualquer época, como se pode verificar com tanta facilidade no Brasil de hoje"
Pouco se ouve falar no Brasil, já faz um bom tempo, em intelligentsia. Quem ainda utiliza essa expressão, hoje em dia, ou sabe de sua existência? Como é possível lembrar, a palavra foi tomada em empréstimo do russo, para designar a classe de gente que em geral vive nos degraus superiores da sociedade e a quem se atribui a capacidade de pensar o que é melhor para todos, devido aos altos teores de sua instrução, preparo profissional e inteligência. Haverá, com certeza, boas razões para o conceito ter saído de moda e caído em desuso; professores de sociologia podem explicar isso bem melhor que um artigo de revista. É interessante notar, em todo caso, que no Brasil de ontem e de hoje, quando se pensa na produção de resultados práticos, a intelligentsia sempre pareceu competir em desvantagem com o que poderia ser descrito como a sua outra face – a burritsia. Trata-se de uma classe em tudo idêntica à primeira. Os que fazem parte dela também estudam muito, raciocinam "em bloco", armam estratégias e, ao fim desses esforços, sempre chegam à conclusão errada – ou, entre todas as decisões possíveis, escolhem sempre a pior.
Um dos grandes momentos da burritsia nacional ocorreu quando os governos militares, entre os anos 60 e 70, descobriram que um dos piores problemas do Brasil, no seu modo de ver as coisas, era a existência de estradas de ferro. Passaram, então, a erradicar ferrovias com a urgência de quem combate a saúva. Arrancaram trilhos do chão, fecharam estações e exterminaram companhias inteiras; ficaram só com os funcionários e a folha de pagamento. O resultado é que o Brasil perdeu de trinta a quarenta anos no desenvolvimento de sua estrutura ferroviária e hoje tem de correr atrás para recuperar uma parte, pelo menos, do atraso. Naturalmente, demora e custa caro. Para ficar num exemplo só, a Ferrovia Norte-Sul, que um dia ligará Goiás ao Maranhão, atravessando o Tocantins, começou a ser construída há 22 anos e ainda não conseguiu cobrir nem a metade do trajeto previsto; até hoje não transportou um único saco de soja, o que deveria ser um dos seus principais propósitos, e alguns trechos da sua parte sul nem sequer foram licitados para dar-se início às obras. Conclusão: o que já estava pronto não existe mais, e o que precisa existir não está pronto.
Os colossos do pensamento brasileiro também nos brindaram no passado com a extraordinária noção de que o país não teria futuro se não controlasse, do começo ao fim, todo o processo da produção de computadores – sem isso, o Brasil ficaria na dependência de "potências estrangeiras" numa área estratégica da tecnologia. E se num dia qualquer a IBM, por exemplo, não quisesse vender um computador para a gente? A solução seria projetar e construir aqui dentro o nosso próprio parque digital, e para tanto os produtores nacionais teriam de ser protegidos da competição internacional com a "reserva de mercado". Num período em que o mundo começava a andar na direção exatamente oposta, com a descoberta de que o importante não era juntar peças para montar um computador, e sim ter as melhores ideias para tirar proveito do seu funcionamento, o governo brasileiro imaginava que conseguiria legislar sobre o pensamento humano e proibir a sua livre circulação de um lado para outro do planeta. Hoje parece engraçado que uma coisa dessas tenha sido levada a sério, mas aí está: o Brasil oficial passou anos acreditando que computador era algo que tinha de ser controlado pelo governo, como a emissão de moeda ou o funcionamento dos semáforos nos cruzamentos de rua. Deveria, é claro, servir à segurança nacional e ser utilizado, pensando bem, apenas por engenheiros ou técnicos capacitados.
A burrice faz parte das doenças que não têm cura; por isso mesmo, produz efeitos em qualquer época, como se pode verificar com tanta facilidade no Brasil de hoje. Por trás dela há o princípio básico de que o mundo se divide em gente "do ramo", a quem cabe decidir os grandes temas de interesse público, e os demais, a quem cabe pagar pelas consequências; uma de suas marcas clássicas é a intolerância com a opinião de quem "não entende nada do assunto". A agravante é que o Brasil gosta de se considerar um país espertíssimo, onde frequentemente a "malandragem" é tida como uma forma superior de virtude. É o ideal para esconder os sintomas da moléstia. É, também, o caminho mais curto para o povão acabar no papel de otário, como comprova todos os dias o noticiário político. Quem sai ganhando, sempre, é a espertetsia.
Fonte: Revista Veja - Edição 2120 - 8 de Julho de 2009.
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