terça-feira, 14 de abril de 2009

Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklärung”)


Immanuel Kant – 1724-1804 (5 de dezembro de 1783, p. 561 1)

“Esclarecimento” [Aufklärung] significa a saída do homem de sua menoridade, da qual o culpado é ele próprio. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a sua causa não estiver na ausência de entendimento, mas na ausência de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem a ousadia de fazer uso de teu próprio entendimento – tal é o lema do Esclarecimento [Aufklärung].

A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, não obstante, de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam porque é tão fácil que os outros se constituam seus tutores. É tão cômodo ser menor! Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que decide por mim a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros hão de se encarregar em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (incluindo todo o belo sexo) considera difícil e também perigosa à passagem à maioridade, pois aqueles tutores de bom grado se encarregaram de supervisioná-la. Depois de terem em primeiro lugar embrutecido o seu gado doméstico e cuidadosamente preservado essas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar nem um só passo for do caminho em que as encerraram, e tal seria para aprender a andar, mostram-lhes depois o risco que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, na verdade não é tão grande esse perigo, já que por fim aprenderiam muito bem a andar, depois de algumas quedas. Basta um exemplo desse tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo, de um modo geral, em suas tentativas futuras. É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da minoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor por ela, por ora sendo de fato incapaz de utilizar o seu próprio entendimento, porque jamais o permitiram tentar assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem dele se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro, ainda que sobre o mias estreito fosso, pelo fato de não estar habituado a esse movimento livre. Por isso são bem poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender uma marcha segura.

Mas que um público se esclareça [aufkläre] a si mesmo é perfeitamente possível; mais do que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois sempre se hão de encontrar alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, após terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por conta própria. Notável nesse caso é que o público, que anteriormente foi por eles conduzido a esse jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores, eles próprios incapazes de qualquer esclarecimento [ Aufklärung]. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou os predecessores destes. Por isso, um público só muito morosamente pode chegar ao esclarecimento [Aufklärung]. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, mas jamais produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cinturões para conduzir a grande massa destituída de pensamento.

Para esse esclarecimento [Aufklärung], porém, nada mais se exige senão liberdade. E a mais inofensiva dentre tudo o que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todos os assuntos. Ouço agora, porém, exclamações de todos os lados: “não raciocineis!” O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos. O financista exclama: “não raciocineis, mas pagai!” O sacerdote proclama: “não raciocineis, mas acreditai!” (Um único senhor no mundo diz: “raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!”). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Mas que limitação impede o esclarecimento [ Aufklärung]? Qual não o impede, e mesmo o favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [Aufklärung] entre os homens. O uso privado da razão pode, porém, ser muitas vezes bastante limitado, sem que isso venha a ser um empecilho ao progresso do esclarecimento [Aufklärung]. Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, na condição de sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado de sua razão aquele que o sábio pode fazer dela em determinado cargo público ou função a ele confiada. Ora, para muitas profissões exercidas no interesse da comunidade é necessário certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade devem se comportar de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em tais casos, certamente não é permitido raciocinar, mas deve-se, sim, obedecer. À medida, porém, que essa parte da máquina se considera simultaneamente membro de uma comunidade total, chegando até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na condição de sábio que dirige a palavra a um público por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar sem que com isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo. Assim, seria bastante nocivo se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem, quisesse se pôr a raciocinar em alto e bom tom em seu serviço quanto à conveniência ou à utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Para ser razoável, no entanto, não se lhe pode impedir, na condição de homem versado no assunto, de fazer observações sobre os erros no serviço militar, e de expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a pagar os impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como escândalo (passível de causar uma desobediência generalizada). Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Da mesma forma, também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com essa condição. Mas, como sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar a conhecer ao público todas as suas idéias, cautelosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, expondo suas propostas visando à melhor instituição da essência da religião e da Igreja. Aqui nada existe que possa significar um peso na consciência. Pois o que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja o apresenta como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, estando porém obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isso ou aquilo; e são esses os fundamentos comprobatórios de que ela se serve. Toda utilidade prática para a sua comunidade, ele a extrai de preceitos que ele próprio não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se comprometer, já que não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja oculta. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que contradiga a religião interior. Pois se acreditasse encontrar essa contradição, em sã consciência não poderia desempenhar sua função: teria de renunciar. Por conseguinte, o uso de um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é um uso exclusivamente privado, já que é sempre um uso doméstico, por maior que seja a assembléia. Com relação a esse uso, ele, enquanto padre, não é livre nem tem direito a sê-lo porque executa uma incumbência estranha. Já na condição de sábio, ao contrário, que com suas obras fala ao verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de irrestrita liberdade para fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores, constitui um absurdo que resulta na perpetuação dos absurdos.

Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com certo credo invariável, para com isso exercer uma incessante supertutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Isso é completamente impossível, posso dizer. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre todo ulterior esclarecimento [Aufklärung] do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, ainda que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que para esta se torne impossível ampliar seus conhecimentos (sobretudo os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento [Aufklärung] isso seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente nesse avanço. E a posteridade encontra-se, pois, plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor, por um prazo curto e determinado, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, franquear-se-ia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, em sua condição de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos e possíveis defeitos das instituições vigentes. Essas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em votação, ainda que não unânime, uma proposta visando a proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, mas sem prejuízo aos que optassem por se conservar fiéis às antigas. No entanto, é completamente proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso, por assim dizer, aniquilar certo período de tempo na marcha da humanidade na via do aperfeiçoamento, tornando-o estéril e nocivo para a posteridade. Um homem pode, sem dúvida, no que diz respeito à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento [Aufklärung]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e atar aos pés os sagrados direitos da humanidade. Mas o que não é lícito a um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois a sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na sua. Ao cuidar para que toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, pode deixar que em todo o resto os seus súditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isso não lhe importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de trabalhar, de acordo com toda a sua capacidade, na determinação e na promoção de si. Chega a causar dano à sua majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete à vigilância do seu governo e os escritos em que seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo ocorre quando procede dessa maneira não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Caesar non est supra grammaticos, mas também, e em extensão muito maior, quando rebaixa tanto o seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os demais súditos.

Se se fizer então a pergunta: “vivemos hoje uma época esclarecida [aufgeklärten]?”, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento [Aufklärung]. Ainda falta muito para que os homens nas atuais condições, tomados em conjunto, encontrem-se já em uma situação, ou que nela possam se inseridos, cuja matéria religiosa seja capaz de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem que sejam dirigidos por outrem. Claros indícios temos somente de que agora lhes foi aberto o campo em que poderia lançar-se livremente a trabalhar e reduzir progressivamente os obstáculos ao esclarecimento [Aufklärung] geral ou à saída dos homens de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada dessa perspectiva, a época atual é a época do esclarecimento [Aufklärung] ou o século de Frederico.

Um príncipe que não acha uma indignidade afirmar que considera um dever nada prescrever aos homens em termos de matéria religiosa, concedendo-lhes nesse assunto plena liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente esclarecido [aufgeklärt] e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. Em seu governo, os sacerdotes dignos de respeito podem, sem prejuízo ao seu dever funcional, expor livre e publicamente, na condição de súditos, ao mundo, para que os examinasse, sues julgamentos e opiniões em um ou outro ponto divergentes do credo admitido. Com mais forte razão isso se dá com os demais, que não são restringidos por nenhum dever oficial. Esse espírito de liberdade espalha-se também pelo exterior, mesmo em lugares em que é preciso enfrentar obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si mesmo. Serve de exemplo para isso o fato de que, em um regime de liberdade, a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade em nada constituírem motivo de inquietação. É por si mesmos que os homens progressivamente se desprendem do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.

Ressaltei preferencialmente, em matéria religiosa, o ponto principal do esclarecimento [Aufklärung], a saída do homem de sua menoridade, da qual é culpado. Pois no que se refere às artes e ciências, nossos senhores não têm o menor interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além do que também aquela menoridade é de todas a mais nociva e a mais indigna. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira chega a ir além e entende que, mesmo no tocante à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expressar publicamente ao mundo suas idéias sobre uma melhor compreensão dela, ainda que por meio de uma corajosa crítica ao estado de coisas existente. Um brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos.

Mas também somente aquele que, mesmo sendo ele próprio esclarecido [“aufgeklärt” ], não teme sombras, tendo à mão ao mesmo tempo um em numeroso e bem disciplinado exército para assegurar a tranqüilidade pública, pode dizer algo que não seja lícito a um Estado livre ousar: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; contanto que obedecei! Revela-se aqui uma peculiar e inesperada marcha das coisas humanas; como, aliás, quando se considera essa marcha em conjunto, nela quase tudo é paradoxal. Um grau mais elevado de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo, e não obstante impõe a ela limites intransponíveis; um grau menor daquela confere a esse espaço a oportunidade de expandir-se o máximo possível. Se, portanto, a natureza, sob esse duro envoltório, desenvolveu o germe de que trata delicadamente, a saber, a inclinação e a vocação para o pensamento livre, este atua em progressivo retorno sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna cada vez mais capaz de agir de acordo com a liberdade), e finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que para si próprio vê conveniência em tratar o homem, agora mais do que simples máquina, segundo a sua dignidade2.


_________________


1 A indicação de página do Berlinische Monatschrift se reporta à seguinte nota da frase: “É conveniente sancionar ulteriormente o vínculo conjugal por meio da religião, do Sr. Preg. Zöllner: “Que é esclarecimento [Aufklärung]?” Essa pergunta, tão importante quanto “Que é a verdade?”, deveria ser respondida antes de se começar a esclarecer [aufklären]! Contudo, ainda não a vi respondida em parte alguma.

2 No periódico semanal Notícias de Büsching, com data de 13 de setembro, leio hoje, 30 de setembro, o anúncio do Berlinische Monatschrift deste mês, no qual foi publicada a resposta do Sr. Mendelssohn à mesma pergunta. Ainda não a tenho em mãos; se a tivesse, teria sustado a presente resposta, que agora só pode constar aqui como tentativa de mostrar até que ponto o acaso terá feito coincidirem os pensamentos.

Fonte: http://serpensar.vilabol.uol.com.br/esclarecimento.htm#_ftn2

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Blog Widget by LinkWithin