The Matrix,
(The Matrix)
de Andy Wachoeski e Larry Wachowski
(1999)
Eixo Temático O desenvolvimento da técnica na sociedade do capital tende a aparecer como desenvolvimento tecnológico, com objetos complexos assumindo formas estranhadas, que sob certas circunstâncias sócio-históricas podem assumir alto potencial destrutivo. Na medida em que se amplia, o fetichismo da mercadoria imprime sua marca indelével na sociabilidade humana, constituindo formas complexas de fetichismo social, criando a aparência de uma tecnologia onipotente e malévola. O fetiche da técnica através dos objetos tecnológicos tendem a ocultar a verdadeira dominação do capital como relação social a serviço da reprodução hermafrodita da riqueza abstrata. Na medida em que a tecnologia assume novas formas materiais, instaurando novas técnicas de virtualização de base bio-informática de intenso cariz manipulatório, tal fetichismo da técnica alcança maior intensidade e amplitude, principalmente no plano do imaginário social. O problema da tecnologia é o problema do controle social capaz de abolir o fetichismo da matrix tecnológica. Na medida em que tais contradições do capital se acirram, explicita-se a necessidade do controle social dos objetos tecnológicos complexos, sob pena do aprofundamento da barbárie social, tendo em vista que eles são utilizados, em si e para si, como nexus de intensificação da manipulação e da produção destrutiva do capital. Temas-chaves: técnica e tecnologia, capital e processo civilizatório, fetichismo e controle social, capitalismo manipulatório e novas tecnologias da virtualização. Filmes relacionados: “Blade Runner”, de Ridley Scott; “Metropólis”, de Fritz Lang; “O Show de Truman”, de Peter Weir; “Gattaca – A Experiência Genética”, de Andrew Nicoll; “Simone”, de Andrew Nicoll. |
Análise do Filme
Thomas Anderson é um programador de sistemas que durante o dia, trabalha num corporação de software, a MetaCortex, uma das maiores empresas de software do mundo; e durante a noite, assume o papel de um hacker, adotando o nickname Neo. Até que, certo dia, a vida de Thomas A. Anderson é convulsionada no bom estilo kafkiano (em seu conto clássico, Franz Kafka nos diz, logo nas primeiras linhas: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”). Mas Neo não é Gregor Samsa. Sua metamorfose será de outro tipo. O que ele recebe pela manhã, na tela de seu computador, é uma exortação: “Acorde, Neo...A Matrix te achou. Siga o coelho branco”. Esta é a primeira (e significativa) mensagem do filme Matrix. Na verdade, trata-se de uma convocação misteriosa de um grupo clandestino, liderado por Morpheus.
Logo na cena de abertura do filme temos agentes federais perseguindo Trinity, membro do grupo terrorista. De relance, aparece a noticia de que Morpheus está sendo caçado (“A caçada começa...”). É nesta trama misteriosa que Thomas A. Anderson, o pacato empregado, irá se inserir. Sem motivo aparente, ele passa a ser caçado pelos agentes federais. Tenta escapar, mas não consegue. Neo é considerado pelos agentes federais um elo do grupo terrorista de Morpheus. Após ser liberado, é conduzido por Trinity até o esconderijo misterioso de Morpheus. Neste momento, Neo é desafiado a escolher entre a pílula azul e a pílula vermelha. Esta é sua primeira (e decisiva) escolha Ou seja, ele terá que escolher entre permanecer como está (imerso na “stupid little life”, como diria Lester Burhan, personagem central de Beleza Americana, de Sam Mendes), ou conhecer a verdade do Real. Imbuído de aguda curiosidade, Neo escolhe a pílula vermelha, que o conduz a uma outra dimensão da sua vida pessoal. Ao escolher a pílula vermelha, Neo renasce, literalmente.
A partir daí, Neo “conhece” a Matrix e o significado da luta do grupo de Morpheus. Torna-se membro da resistência humana, atuando na Matrix a partir de sua base submarina, o Nabucodonosor. Desde a escolha da pílula vermelha, a trama do filme dos Irmãos Wachowski se desenrola em fases delimitadas: o (re)nascimento de Neo, o descobrimento da Verdade, seu treinamento, a ida ao Oráculo; a traição e armadilha de Cypher, a captura de Morpheus, seu resgate por Neo e Trinity, o duelo no Metrô entre Neo e o agente Smith; a fuga de Neo, sua morte e ressurreição e a afirmação de Neo como o Escolhido, aquele que irá redimir a humanidade da dominação das Máquinas, libertando-os da Matrix.
Embora Neo não seja Gregor Samsa, personagem de A Metamorfose de Franz Kafka, existem coisas em comum entre eles. Em primeiro lugar, Thomas A. Anderson é um homem solitário, oprimido pelo trabalho estranhado. É o que se sugere logo no inicio do filme. Num diálogo com um amigo, Neo observa: “Você já se sentiu como se não soubesse se está acordado ou se está sonhando...?”. E o amigo retruca: “Você precisa sair um pouco, cara”. Mas, tal como Gregor Samsa, movido pela ética do trabalho estranhado, Neo observa: “Não posso. Preciso trabalhar amanhã.” Enfim, a metamorfose de Neo é a metamorfose de um proletário da informação-mercadoria, totalmente desefetivado – no sentido da precarização - em sua capacidade de apreender o sentido do real.
É Trinity que, logo ao conhecer Neo, descreve as angústias do jovem proletário. Diz ela: “Sei porque está aqui, Neo. Sei o que anda fazendo. Sei porque mal dorme; porque mora sozinho e porque, noite após noite, senta-se ao computador. Você o está procurando...” E mais adiante observa: “É a pergunta que nos impulsiona, Neo. Foi a pergunta que te trouxe aqui, assim como eu.” Na verdade, a pergunta que impulsiona Neo é “o que é a Matrix”. Diz Trinity: “A resposta está aí, Neo. Ela está à sua procura. E ela te encontrará se você desejar.” Ao dizer que “é a pergunta que nos impulsiona”, Trinity faz uma afirmação ontológica. Diz-nos o filósofo marxista Georg Lukács: “...a pergunta é um produto imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de que o ato de responder é o elemento ontologicamente primário nesse complexo dinâmico.” O que significa que, se a pergunta é o que nos impulsiona, é o ato de responder e a resposta enquanto ação moral, que irá constituir o elemento ontologicamente primário. É o que vemos no decorrer do filme Matrix, onde o ato de responder permeia toda a trama narrativa, sendo, em última instância, as escolhas morais que Neo é obrigado a fazer.
É deveras significativa, como cena preliminar do filme, o diálogo entre Neo e seu Gerente na MetaCortex. Tal cena expõe, num realismo cru, o caráter proletário (e insurgente) de Thomas Anderson. Por ser uma insurgência meramente individual, quase heróica, contra o capital, o ato de Thomas A. Anderson possuía um caráter contingente e clandestino (Neo era um hacker).Um traço da personalidade de Neo é a autonomia (por exemplo, bem adiante, Morfeu chega a perguntar a Neo: “Você acredita em destino, Neo?” E ele diz: “Não gosto de pensar que não controlo minha vida.”). Mas naquela manhã de metamorfose, Neo é atingido por um clima de paranóia (“Por que está acontecendo comigo? O que eu fiz? Não sou ninguém. Eu não fiz nada.”) E sem o saber, Neo se insurgia contra a manipulação toyotista da MetaCortex. Diz o Gerente: “Você não aceita autoridade, Sr. Anderson. Você se acha especial, como se as regras não se aplicassem a você. Esta é uma das maiores empresas de software do mundo porque cada funcionário entende que faz parte de um todo. Logo, se um funcionário tem problema, a empresa tem problema. Chegou a hora de fazer uma escolha, Sr. Anderson. Ou você escolhe estar na sua mesa no horário a partir de hoje ou você escolhe achar outro emprego.” (uma cena similar ocorre entre Lester Burhan e seu Gerente no filme Beleza Americana, de Sam Mendes – novamente é a explicitação de que a base da insurgência pessoal possui um lastro essencial no trabalho estranhado).
Nessa breve cena de diálogo com o Gerente da MetaCortex, Neo é provocado a fazer uma escolha moral: “Chegou a hora de fazer uma escolha, Sr. Anderson”. Enfim, a tragédia de Neo, no decorrer de Matrix, é ser obrigado a escolher, a agir e não apenas a perguntar (o mesmo desafio moral é posto no decorrer de todo o filme). O filme dos Irmãos Wachowski é uma verdadeira metafísica da ação moral nas condições de uma sociabilidade barbarizada pelo hiperfetichismo do capital.
Após ser pego pelos agentes federais, logo no inicio do filme, Neo é interrogado pelo agente Smith. Mais uma vez temos facetas da personalidade típica de Neo. Diz Smith: “Thomas A. Anderson, programador de uma respeitável empresa de software. Você é registrado no seguro social, paga seus impostos, ajuda a senhoria a levar o lixo para fora. A outra vida é dentro de computadores, onde é o hacker conhecido pelo apelido de ‘Neo’ e é culpado de quase todos os crimes por computador previsto na legislação.” E diz: “Uma dessas vidas tem futuro. A outra não tem” (é curioso que o agente Smith não coloca para Neo uma situação de escolha moral, mas ele o intima a colaborar sob pena de não ter futuro).
Novamente, um paralelo curioso entre Neo e Gregor Samsa, o grotesco (e trágico) personagem de Franz Kafka. Tal como Gregor, Neo possui, em si, traços de conformismo com a ordem vigente – “...paga seus impostos, ajuda a senhoria a levar o lixo para fora.” Entretanto, ao invés de Gregor Samsa, Neo possui uma outra vida pessoal, “dentro de computadores” (o fora-de-si talvez seja a forma de Neo lidar com o dentro-de-si). Talvez por isso não tenha acordado naquela manhã como um inseto monstruoso. Enfim, a vida clandestina de Neo é seu grito de escape (Gregor, em A Metamorfose chegou a imaginar tal grito de escape, que só ficou no plano imaginário) (ALVES, 2004).
Na atitude de Neo, no seu estilo de vida esquizóide, solitário e clandestino, ao mesmo tempo, havia, segundo Trinity, a pressuposição de uma busca da Verdade. Chegara a hora do agir moral. Thomas A. Anderson atingira seu limite. Num certo momento, Trinity diz para Neo: “Você sabe de algo. Não consegue explicar o quê. Mas você sente. Você sentiu a vida inteira: há algo errado com o mundo. Você não sabe o que, mas há; como um zunido na sua cabeça te enlouquecendo. Foi esse sentimento que te trouxe até aqui.”
A partir da escolha da pílula vermelha, o momento ético decisivo da trama narrativa do filme Matrix, acompanhamos uma longa Odisséia, constituída por uma série de escolhas morais. Além da escolha da pílula vermelha, Neo será obrigado a fazer outras escolhas decisivas, como resgatar ou não Morpheus ou se submeter ou não ao destino. Como diria Lukács, “o homem é um ser que dá respostas”. Como já salientamos, Matrix é um filme com uma profunda base moral. Em vários momentos, Neo se depara com o desafio: “Você é quem escolhe”.
Mas, além das escolhas morais, o filme Matrix é constituído por lutas violentas entre Neo e os agentes federais, liderado pelo agente Smith. Na verdade, as escolhas morais ocorrem no interior de incisivas lutas libertárias, lutas de vida e morte. Por um lado, o grupo de Morpheus, que acessa a Matrix intervindo-se em programas-invasores, capazes de investir (e desestabilizar) a ordem cotidiana dominante. São agentes terroristas que lutam, por dentro, contra o sistema das Máquinas. Por outro lado, os agentes federais, guardiões da Matrix, meros programas sensientes que acusam e perseguem invasores do sistema (ao atuarem na Matrix, o grupo de Morpheus e Neo são considerados softwares invasores).
O agente Smith é o líder destes programas sensientes. Como diz Morpheus: “Programas sensientes podem entrar e sair de qualquer software ainda conectado ao sistema deles [...] Dentro da Matrix eles são todos e não são ninguém. Nós sobrevivemos nos escondendo deles e correndo deles, mas eles são os porteiros. Eles protegem e têm todas as chaves. Cedo ou tarde, alguém terá de lutar com eles.” E depois diz: “A força e a velocidade deles se baseiam num mundo de regras. Eles não podem ser tão fortes ou rápidos quanto você.” O que significa que a luta intensa que ocorre dentro da Matrix, dentro de cenários urbanos indiferente ao duelo de titãs digitais, é a luta entre meras representações informacionais.
O programa-guardião, capaz de se traduzir em qualquer elemento de Matrix, o agente Smith, pode ser considerado a prefiguração de um equivalente geral digital. Na verdade, Smith expressaria tal equivalente geral universal do mundo de Matrix. Como disse Morpheus: “Dentro da Matrix eles são todos e não são ninguém.” Seria o agente Smith a metáfora da forma dinheiro no mundo das mercadorias? Vejamos o caso da forma-dinheiro, considerado o equivalente geral universal no mundo das mercadorias. Ele representa, por exemplo, todas as mercadorias e, ao mesmo tempo, não é nenhuma delas. Mas é através dele que as mercadorias podem se trocar e realizar seu valor de troca (a fonte do valor das mercadorias é o trabalho abstrato, que, na mitologia de Matrix, é energia humana abstrata, ou seja, a fonte de energia das IA). É curioso que o agente Smith é tão escravo da Matrix quanto Morpheus e seu grupo de humanos, pois foi programado apenas para perseguir os invasores da Matrix e destruir Sião (os programas sensientes são escravos de um “mundo de regras”). Num certo momento, o agente Smith chega a dizer: “Eu preciso sair daqui. Eu preciso me libertar. Quando Sião for destruída, não precisarei mais ficar aqui.”
A narrativa complexa de Matrix possui dois planos espaço-temporais. Primeiro, o que ocorre no deserto do Real, a Terra após a vitória das Máquinas, que transformara, homens e mulheres em fonte de energia. Éé interessante que, em Matrix, a distopia pressupõe a inversão fantástica da relação homem x Máquina. Nela, são os homens que alimentam, com energia, as Máquinas Inteligentes e não o contrário. Com a revolta das IA (Inteligência Artificial), o estranhamento – no sentido marxiano -atinge sua dimensão radical. Tal possibilidade existe desde que as Máquinas tornaram-se IA. É um cenário devastador que existe na superfície da Terra. Por outro lado, ainda neste plano espaço-temporal real, cujo data é perto de 2199 (nota-se que se perdeu um percepção clara da temporalidade), existem os homens que resistem no subterrâneo, habitando a cidade de Sião, “a última cidade humana, o único lugar que nos restou perto do núcleo da Terra onde ainda é quente”, cujo acesso é secreto (o que os agentes federais queriam era o código de acesso a Sião para poderem derrotar, de vez, a resistência humana).
Segundo, o que ocorre no mundo real simulado pela Matrix (cujo data é 1999). É o cenário urbano da metrópole, com sua vida cotidiana, sua pseudo-concreticidade, onde as pessoas estão imersas no emprego e nas suas ambições triviais. É o mundo tal como ele é. Num certa passagem, Neo, ao se deslocar pela metrópole, indo ao Oráculo, observa, pela janela da limousine, certo restaurante. Diz ele: “Eu comia ali.” E arremata: “Tenho essas lembranças da minha vida. Nenhuma delas aconteceu.” (tal como em Blade Runner, temos não apenas memórias protéticas, mas uma realidade simulada, um simulacro de Real).
Na verdade, em Matrix, a realidade simulada é uma virtualização complexa espúria que oculta a verdadeira Realidade, o “deserto do Real”. De um lado, a bárbarie regressiva perto de 2199. De outro lado, o simulacro digital complexo que oculta a exploração – no sentido marxiano – do gênero humano pelas Máquinas Inteligentes. Estamos diante de um mundo digital, constituído de 0 e 1, um mundo binário, tão perfeito quanto a própria realidade concreta (no sentido da certeza sensível e da percepção, e mesmo do entendimento, empregando as categorias de Hegel). Neste mundo de Matrix, os objetos e pessoas são meros sistemas de códigos binários, programas de computador, deste imenso sistema informático.
O mundo de Matrix é sonho. Pergunta Morpheu: “Você já teve um sonho, Neo, que parecia ser verdadeiro? E se você não conseguisse acordar desse sonho? Como você saberia a diferença entre o mundo dos sonhos e o mundo real?”. Nesse caso, o mundo só existe agora como parte de uma simulação neurointerativa (exclama Morpheu: “Você vivia num mundo de sonhos, Neo!”). E noutro lugar, Morpheus observa: “A Matrix é um mundo dos sonhos gerado por computador feito para nos controlar, para transformar o ser humano nisto aqui [bateria]”.
É importante destacar que, na mitológica de Matrix, o objetivo das IA ao escravizarem homens e mulheres é transforma-los em fonte de energia, tendo em vista que, com o cataclismo nuclear, abateu-se sobre a Terra a total escuridão. E as IA precisavam de fonte energética. Culpando os homens pela tragédia universal, as IA se rebelaram e os escravizaram, adotando-os como fonte de energia (diz Morpheu: “O corpo humano gera mais bioeletricidade do que uma bateria de 120 volts e mais de 25 mil BTUs de calor corpóreo. Combinado com uma espécie de fusão, as máquinas encontraram mais energia do que jamais precisariam.”).
O discurso do agente Smith diante um Morpheu dopado é um libelo contra a civilização tecnológica (ironicamente dito por um representante-mor da Máquinas Inteligentes). Diz ele: “Os homens...vão para uma área e se multiplicam, até que todos os recursos naturais sejam consumidos. A única forma de sobreviverem é indo para uma outra área. Há um outro organismo neste Planeta que segue o mesmo padrão...Um vírus.” E arremata: “Os seres humanos são uma doença. Um câncer neste planeta. Vocês são uma praga!”.
Enfim, as Máquinas Inteligentes, ao escravizarem homens e mulheres, produzindo-os em série, em imensas indústrias-celeiros, numa das cenas mais bizarras da distopia de Hollywood, passaram a expropriar da atividade vital de homens e mulheres (e portanto, do seu trabalho vivo), mais valor (o que significa, na ótica de Marx, energia humana abstrata). De fato, homens e mulheres foram reduzidos àquilo que na ótica do capital é a única coisa que lhe interessa – trabalho abstrato, ou seja, a forma de trabalho caracterizada por ser o mero dispêndio de energia humana, não importando seus atributos concretos (é de Marx a distinção entre trabalho abstrato e trabalho concreto). Emfim, na ótica do sistema do capital, só servimos na medida em que somos fonte de trabalho abstrato, base do valor e da mais-valia (MARX, 1985).
Em Matrix, os homens e mulheres estão imersos no trabalho abstrato. É contra tal função social dominadora que se insurgem os “terroristas” de Morpheus. Deste modo, as Máquinas são, em Matrix, a metáfora do Capital como sistema de extração de sobretrabalho, orientado para a acumulação de valor.
Na primeira metade do filme Matrix surgem digressões sobre o que é o real. Procura-se constituir elementos filosóficos capazes de dar um fundamento lógico para o enredo complexo. Na verdade, no decorrer do filme, surge com insistência a pergunta: afinal, o que é a Matrix? Não é fácil entender o que é a Matrix. Sua idéia não pertence ao senso comum. Por isso, os roteiristas tiveram que salientar, em vários momentos, pequenas digressões sobre a natureza desta realidade (ou da realidade). Morpheus é o grande filosofo da Matrix. Diz ele: “Você deseja saber o que ela é ? A Matrix está em todo lugar. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade. Que você é um escravo. Como todo mundo, você nasceu num cativeiro; nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para uma mente.” Mas, Morpheu sabe que está lidando com algo que é inapreensível pela mera percepção ou entendimento. “Infelizmente, é impossível dizer o que é a Matrix. Você tem de ver por si mesmo.”
Na trama de Matrix, o corpo, uma dimensão ineliminável da subjetividade humana é uma impossibilidade recorrente. Neo, Morpheus, Trinity e seu grupo, são entes digitais, programas-invasores do sistema de Matrix. Enquanto agem dentro da Matrix, sua aparência é mera “auto-imagem residual”. O que significa que a corporalidade viva (e simulada) de Neo, Morpheus, Trinity e os demais não é real. Diz Morpheu: “Sua aparência agora é o que chamamos de “auto-imagem residual”. Ë a projeção mental do seu ‘eu’ digital.”E por outro lado, Smith e os agentes federais, são programas sencientes que rastreiam os invasores. De fato, eles não existem, ou seja, não possuem um corpo (como Neo, Morpheus, Trinity e os demais), mas apenas uma representação mental, um corpo digital, que enfrenta os supostos “terroristas” que invadem Matrix (da mesmo forma, existe uma disjunção temporal – talvez o tempo das IA seja um não-tempo e o tempo de Matrix, que é o ano de 1999, seja tão simulado quanto o do espaço digital).
Podemos destacar como eixo central da estrutura narrativa de Matrix, o processo dialético de auto-conhecimento de Neo, constituído por momentos de negação e de afirmação. Por exemplo, a ida ao Oráculo, a traição de Cipher, a salvação de Morpheus e a ressurreição de Neo, ao lado das lutas incisivas que percorrem toda a trama de Matrix são parte constitutiva desta predestinação. Elas exprimem a trajetória da Verdade de Neo. O ápice deste processo de revelação é o duelo (no estilo dos velhos western de Hollywood), onde Neo enfrenta o agente Smith no subterrâneo do Metro Balboa. É através nesta luta de vida e morte que Neo atinge a consciência de si (a sugestão com a Fenomenologia do Espírito, de G.W. Hegel, é flagrante).
Como salientamos acima, a trama narrativa é marcada por escolhas morais de Neo. O que Matrix sugere é que o conhecimento da Verdade é produto de escolhas morais. Antes mesmo da escolha da pílula vermelha, Neo escolhe não se render aos agentes federais, liderados por Smith e ir adiante ao conhecer Trinity. É sua curiosidade que o leva até Morpheus. Após a escolha da pílula vermelha, segue adiante e escolhe não aceitar o destino, que segundo o Oráculo, irá obriga-lo a escolher entre a sua vida ou a de Morpheus. Neo escolhe não aceitar tais alternativas. Decide salvar Morpheus e salvar-se. Apesar de não acreditar ser o Escolhido (quase até o final do filme Neo não acredita nisso), é através da luta que ele atinge a auto-consciência de sua predestinação (o salto qualitativamente novo, no plano da consciência de Neo, ocorre quando ele ressuscita, através do ato de amor de Trinity. Antes de ser um apelo romântico, tal sugestão do amor de Trinity ressuscitando Neo, ao estilo dos Contos de Fada, do beijo que desperta a Bela Adormecida, apenas expressa uma última saída lógica para Neo: o Oráculo, que nunca se engana, prenunciara que Trinity iria se apaixonar pelo Escolhido. Se Neo era o Escolhido ele não poderia morrer.
O roteiro do filme Matrix é permeado de insinuações mitológicas, literárias e religiosas, além de ser objeto de densa reflexão para os entusiastas das ciências cognitivas, filosofias da mente e aqueles que tratam da relação Homem x Máquina – no caso a Inteligência artificial. Em torno deste repertório precioso de dicas reflexivas, talvez um dos mais aprimorados da ficção-científica de Hollywood, surgiram, pelo menos, dois livros traduzidos no Brasil que buscam discutir as insinuações temáticas contidas no filme, a partir de várias abordagens teórico-analiticas (inclusive o marxismo). Não iremos nos deter em detalhes (e curiosidades) do roteiro de Matrix, mas apenas delinear o que consideramos elementos significativos axiais, a partir da qual as outras questões laterais estão subsumidas.
Num filme de referências temáticas tão complexo e denso como Matrix, quase um verdadeiro quebra-cabeça, no estilo do jogo “Onde está Wooly?”, é importante sabermos apreender o que é essencial do que é meramente contingente (o que não deixa de ser importante, pois a contingência é uma forma de ser da essência).
Como salientamos até agora, um dos pontos essenciais, é o sentido ético-moral do filme. É uma trama narrativa permeada de escolhas e de enfrentamento do destino, daquilo que está programado e contra isto se insurge Neo e os demais. É, em última instância, o tema da liberdade humana e da própria dialética liberdade e necessidade. É através deste enfrentamento cotidiano, que Neo adquire a consciência de si. É outro ponto decisivo – não existe consciência de si sem luta intensa e enfrentamento com as condições dadas (a Matrix é uma condição dada e os agentes federais, como software de rastreamento, são condições dadas, programadas, escravos da programação-mor da Matrix, obstáculos à liberdade pleiteada pelos seres humanos).
A luta em Matrix é uma luta individual, luta heróica primordial, de Neo (e o grupo de Morpheus) contra os agentes-escravos da Matrix. Não sugere luta de classes, porque tal mediação sócio-historica não está posta na narrativa do filme Matrix. O gênero ficção-cientifica tende a fetichizar (e mistificar) as determinações sócio-historicas. Deste modo, o que aparece é a luta heróica, bem ao estilo de Hollywood, uma luta da individualidade heróica e redendora contra as Máquinas, pois o resto é meramente criações da Inteligência Artificial.
Em última instância, o que temos em Matrix é a luta do homem contra seus objetos estranhados, um estranhamento que atingiu o mais elevado nível de fetichismo, um fetichismo inteligente, capaz de se propor, inclusive, como senhor da natureza (inclusive, os homens). As Máquinas Inteligentes em Matrix buscam a sua própria sobrevivência através da dominação sobre os homens, transformados em meras baterias de energia (metáfora suprema do trabalho abstrato, como já salientamos alhures). É a prefiguração mítica de uma inversão absoluta entre criador e criatura. A criatura domina e vive à custa do criador, criando um novo sistema de dominação. Nesse caso, Frankenstein não apenas foge, mas se impõe, domina, cria um sistema de dominação absoluta, de negação da personalidade vida de seu próprio criador.
As Máquinas Inteligentes não possuem um sentido de vida. É a tecnologia (enquanto forma técnica do capital) que oblitera radicalmente a técnica como afirmação do humano. As Máquinas apenas reiteram o dado, buscando sobreviver em si e para si. E nada mais. Por isso, escravizam homens e mulheres. É o sentido de sistema, ou seja, a falta de sentido, a pura irracionalidade que tanto caracteriza a lógica mecânica do mundo do capital. É a expressão ficcional absurda da fórmula geral do capital - o D-M-D’ (onde D é o dinheiro e M, a mercadoria, sendo o D’, o mais-dinheiro), que reitera apenas a riqueza abstrata, o equivalente geral universal, eliminando, ou subsumindo as determinações concretas. O que são as Máquinas senão abstrações candentes da modernidade do capital? Existe algo mais abstrato que uma Máquina? Ao se tornarem Inteligência Artificial, a abstração adquire um novo patamar de mistificação, pois a abstração tona-se inteligente, adquirindo inclusive uma corporalidade virtual, tal como o agente Smith, mero simulacro digital programado para rastrear (e eliminar) invasores do sistema de Matrix.
Deste modo, Matrix nos sugere, no limite, o absurdo do sistema do capital, expondo, através de uma mitologia ficcional, a ficção-científica, o domínio pleno de objetos-fetiches inteligentes. E mais uma vez reiteramos: o interessante é que, é nesse cenário de fetiche quase-absoluto, que viceja as questões ético-morais. Coloca-se, até numa forma primordial, o problema da liberdade e da autonomia do homem. É como se, apenas sob a dominação mais absurda (e cruel), como na dominação das Máquinas Inteligentes, é que surgisse a possibilidade de redenção libertária (no caso de Matrix, prefigurado no herói messiânico – mas quem prefigura Neo? Apenas ele próprio? Sua classe social ? A comunidade de Sião? O gênero humano? Seria a mera afirmação da individualidade? Ou Neo prefigura uma individualidade comunitária humano-genérica?).
Foi em suas breves considerações sobre o fetichismo da mercadoria e seu segredo, que Marx, no livro I de O Capital, apresentou o que seria a negação da negação do fetiche das coisas. Ou seja, para ele apenas a instauração de “um processo social da vida sob o controle consciente e planejado de homens livremente socializados” é que seria capaz de abolir o fetichismo das mercadorias. Eis a utopia do comunismo para o velho Marx. Em Matrix, o tema do fetichismo é candente e por conseguinte, como seu corolário crucial, o problema do controle social. Afinal, quem controla as Máquinas?
O exagero metodológico de Matrix abre a discussão da natureza do fetichismo que permeia a sociedade tecnológica do capital. Em última instância, a rebelião das Máquinas é a prefiguração mística (pois a questão fulcral é a luta de classes ) da dominação do Capital como sistema de controle sócio-metabólico, como diria Mészáros. Mas como salientamos, a ficção-científica tende a constituir uma ganga mística sob tal nódulo racional. Em Matrix Reloaded e Matrx Revolutions torna-se claro o problema do controle social, expressão deste sistema do fetichismo absoluto exposto em Matrix.
Em Matrix se cruzam referentes ocidentais e orientais, tal como a mitologia de Cristo. Em várias análises, é perceptível insinuações judaico-cristãs e inclusive zen-budistas. Persistem ainda insinuações pagãs, como a ida ao Oráculo. É curioso que, em 2199, sob a dominação das Máquinas, o produto supremo da Razão Tecnológica, o homem está imerso na mitologia. Mais uma vez, Matrix sugere, como vários filmes de ficção-científica, o tema da regressividade civilizatória posta pelo desenvolvimento do sistema sócio-metabólico do capital.
Esta é a suprema contradição deste sistema produtor de mercadorias. Quanto mais o homem consegue reduzir as barreiras naturais, mais se enreda noutra, numa segunda natureza, o sistema do fetiche com suas objetivações estranhadas. A modernidade do capital possui uma dimensão de desencantamento, como destacou Weber. Mas o próprio Weber não deixou de salientar que também surgem novos encantamentos. Antes dele, Marx já destacara que o próprio fetichismo da mercadoria é um tipo de encantamento social. É a reiteração do passado, dos mortos que pesam sobre os vivos, que sempre fascinou os críticos da modernidade (de Comte a Weber, passando por Marx).
Em Matrix, é perceptível o absurdo desta reiteração, quando homens e mulheres de 2199 convivem ainda com visões mitológicas do mundo, aguardando um Messias e habitando comunidades clandestinas em catacumbas subterrâneas, sob regimes de poder oligárquico-militar. É a barbárie generosa de homens e mulheres resistentes à lógica do sistema do capital. Em Matrix, explicita-se tal sociabilidade regressiva, que exige, para tal, um nova (e velha) moral ascética.
Foi por não aceitar tal neo-ascetismo imposta pela barbárie social que Cypher traiu Morpheus e seu grupo (Diz Cypher: “Estou cansado desta guerra...cansado de lutar, cansado deste barco...de sentir frio, de comer a mesma gororoba todo dia....” E assevera: “Eu acho que Matrix pode ser mais real que este mundo...”). Mesmo em Cypher existe uma consciência moral, pois seu contrato de traição com o agente Smith implicava no esquecimento deste ato vil (“Vou voltar a dormir. Quando eu acordar, não lembrarei de nada.”). O esquecimento o prevenia da dor moral.
Talvez tenhamos em Matrix elementos para uma reflexão sobre uma nova ética emancipadora típica dos tempos de sociabilidade regressiva. O que significa que, em tempos de barbárie social é que se exige cada vez mais discernimento contra a manipulação que, na era digital, assume formas candentes; distinção do que é real e imaginário e capacidade ético-moral de escolha como condição para a consciência de si.
O que nos surpreende é que a sociedade tecnológica em sua expressão absurda reitera, e exacerba, tais elementos intrínsecos do processo de hominização/humanização, no plano cognitivo-moral, vinculando, como demonstra o filme Matrix, aos pólos dialéticos verdadeiro conhecimento e escolha moral, verdade e luta heróica – enfim, elementos de uma apreensão dialética do mundo, mesmo que ainda numa forma mistificada, como está no filme dos irmãos Wachowski.
©Giovanni Alves (2004)
(ATENÇÃO: Esta análise de filme é parte do Projeto de Extensão Tela Crítica 2004)
Nenhum comentário:
Postar um comentário