(Jornal Folha de São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003 - Caderno MAIS!)
Treze intelectuais e artistas buscam definir conceitos-chave para a compreensão da crise ideológica por que passa o Brasil e da expectativa de conflito armado no cenário internacional
1. O QUE É O TERMO "ESQUERDA"?
A REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA, a globalização e o fim do "socialismo realmente existente" minaram o significado tradicional do termo (plural, sempre) -o que, a rigor, foi prenunciado no estranho ano de 1968. Isso porque as esquerdas, associadas na origem a lutas por mudanças no sentido da liberdade e da igualdade, tornaram-se, frequentemente, pelas vicissitudes históricas, defensoras do status quo, das desigualdades, dos privilégios e, não raro, de tiranias. Apesar dos desgastes, contudo, talvez pela força da tradição, o termo continua impregnado pelos valores e programas originários. A ver se, ante os desafios do novo século, consegue "aggiornarse" [reciclar-se", recuperando os ideais e o charme que já foram seus, ou se tornará uma relíquia datada nos museus da história.
[Daniel Aarão Reis Filho é professor de história na Universidade Federal Fluminense e autor de, entre outros, "História do Marxismo no Brasil" (ed. Paz e Terra)]
PREFIRO ATIVISMO, MILITÂNCIA E REBELDIA. A metáfora espacial é pálida ("lado correspondente ao do coração humano") ou negativa: "sinistra". É um desejo e como tal não pode ter como base o dever ou a disciplina. Se fosse preciso uma palavra para reconhecer a nova militância, eu escolheria "desobedientes", atividade positiva, construtiva, afetiva. A militância atual não precisa de centro, mas de redes, não precisa definir o que é "de direita" e "de esquerda", porque para os novos ativistas só existe "o lado de dentro". Não possui nenhum modelo pronto para oferecer. É um laboratório mundial. Outra característica da nova militância: fazer da resistência um ato de criação, um contrapoder. Para enfrentar um poder sem fronteiras nem limites, mutante, a nova militância terá que ser igualmente fluida e plástica. Criar novos ícones e ser pop. Conectar a gente das ruas com hackers, nômades, rebeldes. E pode até "na mão direita uma rosa levar"...
[Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, entre outros, de "Joaquim Pedro de Andrade" (ed. Relume-Dumará)]
ORIGINALMENTE A PALAVRA DESIGNAVA OS ATORES QUE durante a Revolução Francesa, defendiam uma radicalização de seus ideais de igualdade e liberdade -os jacobinos em primeiro lugar. Nos séculos seguintes esteve associada à idéia de revolução social. Hoje o termo não possui um sentido claro e unívoco na cena política internacional. Pode, no entanto, ser aplicado aos partidos e atores políticos para os quais a comunidade prevalece sobre o indivíduo na escolha das prioridades das políticas públicas. Para eles a igualdade se estende, para além de seu sentido jurídico, para o terreno das oportunidades sociais. Outra idéia importante é a de que a participação popular ampliada é considerada parte essencial da vida política.
[Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (UFMG)]
Quando eu = tu
é uma irmanação religiosa.
Quando eu = integrar tu
é a utopia terrena.
Quando eu = saber que existe tu
é a esquerda política.
Quando eu explora tu
... todos sabemos.
(Tom Zé é músico e compositor)
(A IDÉIA DA ESQUERDA QUE CHEGA AO PODER.) É de esquerda quem luta por mais igualdade e liberdade; a longo prazo, para mim, quem luta pelo socialismo (a distinguir do comunismo), sistema em que há Estado, direito e, sem dúvida, propriedade privada; mas em que o capital é suprimido ou radicalmente neutralizado. Chegamos ao poder em democracia, o melhor e único caminho. Por isso mesmo, o mais complexo. Dois perigos: radicalismo de esquerda ou simples administração do sistema. O governo Lula tenta evitar um e outro, o que é difícil, mas possível. A esquerda mundial saúda esse governo. Há que saudá-lo; e ajudá-lo -criticando.
[Ruy Fausto é professor emérito da USP e autor, entre outros livros, de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34)]
A ESQUERDA CLÁSSICA propunha o sacrifício da liberdade, da fraternidade e da prosperidade em nome de uma igualdade nivelada por baixo, mas que nem por isso se estendia à liderança revolucionária. A esquerda atual não passa de uma torcida (mal) organizada, a Mancha Vermelha, que espera, por meio da macumba, derrotar a seleção que desclassificou seu time.
[Nelson Ascher é poeta, autor de "Algo de Sol", "Pomos da Discórdia" e "O Sonho da Razão" (ed.34). Como tradutor, publicou "Poesia Alheia" (Imago), entre outros]
É DE ESQUERDA QUEM NÃO PRIVILEGIA A ORDEM em qualquer circunstância, mas está disposto a arriscá-la em nome da justiça social. Quem sabe, que para reduzir a desigualdade e o privilégio, é necessário um Estado com capacidade institucional e administrativo-financeira para garantir os direitos civis (dos liberais), os direitos políticos (dos democratas) e os direitos sociais (dos socialistas). Ser de esquerda não é ser estatista, mas querer fortalecer a capacidade do Estado para que este possa corrigir as falhas do mercado nos planos social e econômico.
[Luiz Carlos Bresser Pereira é professor de economia da Fundação Getúlio Vagas - SP e autor de, entre outros, "Reforma do Estado para a Cidadania" (ed. 34)]
ENTENDO POR POLÍTICAS DE ESQUERDA aquelas que garantem universalmente o exercício das liberdades públicas e asseguram a elevação da renda dos pobres.
[Wanderley Guilherme dos Santos é cientista político, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e autor de, entre outros, "Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-Social Brasileiro" (ed. UFMG)]
APESAR DA GLOBALIZAÇÃO E DO COLAPSO DO SOCIALISMO, o contraste esquerda-direita continua válido, e o termo "esquerda" pode ser tomado como o favorecimento dos valores da igualdade e da solidariedade, em vez da ênfase na ordem e na eficiência da economia capitalista -que seria própria da "direita". Mas aprendemos recentemente duas coisas: (1) a igualdade supõe também a autonomia de cada um, e a expansão do Estado em nome da solidariedade tem de ser atenta aos seus riscos para a autonomia; (2) a afirmação econômica no plano transnacional é afim aos valores da direita, e a esquerda depara o desafio novo de implantar instrumentos efetivos de solidariedade também nesse plano.
[Fábio Wanderley Reis é cientista político, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos]
ASSOCIADA À CAUSA REPUBLICANA e depois ao socialismo revolucionário e ao estatismo, a esquerda pode hoje definir-se como posição política defensora dos interesses dos pobres, excluídos e marginalizados, em nome dos ideais de justiça e crescente igualdade e, para ser liberal-democrática, de direitos em constante expansão ou atualização. É tanto mais consequente quanto menos voluntarista, demagógica ou populista. No Brasil é onde quase todos crêem estar, sem renunciar a posses ou privilégios.
[João Almino é diplomata, diretor do Instituto Rio Branco e escritor; autor, entre outros livros, do romance "As Cinco Estações do Amor" (ed. Record)]
POSIÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA vinculada às seguintes características: defesa dos direitos políticos dos indivíduos, dos direitos sociais de caráter coletivo e da possibilidade de emancipação humana; esquerda quer dizer possibilidade de o sujeito submeter a legalidade econômico-financeira às necessidades sociais; esquerda é termo avesso a qualquer tipo de messianismo ou filosofia de Estado.
[Tarso Genro é secretário especial do Desenvolvimento Econômico e Social do governo Lula]
PALAVRA ATRIBUÍDA À GERAÇÃO DE 1965-1975, tendo recebido, na França, o nome de "geração de 68" e com epígonos entre nós. Saída das lutas de descolonização, eixo de referência histórica na década de 55-65, ela radicalizou os efeitos para uso interno: no apogeu da curva formalista, ela encontrou no estruturalismo sua linguagem, no anti-humanismo, sua filosofia, no esquerdismo sucessivamente remodelado, sua política. A dita geração, que teve "noviços" como Guy Sorman, filhos primogênitos como André Glucksmann e veteranos como Claude Lefort, foi a do radicalismo às avessas. Começou a carreira sob o signo da revisão; continuou sob o do "retorno à", terminou discutindo o "retorno sobre".
[Mary del Priore é professora de história na USP e coordenadora do Arquivo Nacional (RJ). É autora de, entre outros, "Revisão do Paraíso" (Campus)]
FAÇO MINHAS AS PALAVRAS DE WRIGTH MILLS, genial sociólogo de esquerda norte-americano (e o mundo hoje carece demais da existência de esquerdistas como ele no centro do Império). Esquerda significa "crítica estrutural e teorias e descrições da sociedade que, em um ou outro ponto, estão politicamente centradas em reivindicações e programas. Essas críticas, reivindicações, teorias e programas estão moralmente orientados pelos ideais humanistas e seculares da civilização ocidental -acima de tudo, razão, liberdade e justiça. Ser "de esquerda" significa associar a crítica cultural à política, e, as duas, às reivindicações e programas. E significa tudo isso dentro de cada país do mundo".
(Francisco Alambert é doutor em história pela USP e professor de estética e história da arte na Universidade Estadual Paulista)
2. O QUE É O TERMO "GUERRA"
ENTRE OS REALISTAS, é conhecida a tese de que a guerra é a continuação da política por outros meios, supondo-se a inevitabilidade da guerra. Apreciando a beira do abismo, muitos afirmaram, desde a Antiguidade, que a melhor maneira de garantir a paz é bem se preparar para a guerra, o que supõe o paradoxo de Exércitos muito bem treinados para nada fazer. Mas há uma outra fórmula, alternativa: a guerra seria o abandono da política, suposta como atividade pacífica, baseada no conflito reconhecido e legitimado, na pluralidade, e no diálogo contraditório. Assim, para garantir a política, seria necessário inviabilizar a guerra: desarmamento radical e dissolução das Forças Armadas. A guerra secaria por falta de munições e de guerreiros. Mas, nesse caso, Bush, Saddam e assemelhados como reagiriam ao desemprego?
(Daniel Aarão Reis)
NOVA BASE DA POLÍTICA. Distribuição global e permanente de miséria e morte. Biopoder, poder sobre o vivo, vontade de domínio. Militarização do inconsciente mundial, da guerrinha de nervos à militarização das cidades, com a soberania absoluta e fusão entre as ações militares e policiais. Aqui em Copacabana, dormimos e acordamos com balas de verdade e fogos de artifício no morro do Pavão-Pavãozinho. Depois do 11 de setembro em NY ficou claro: a guerra (e o Estado policial) é a nova forma de dissuasão e neutralização de toda atividade política e social autônoma. As guerras não são mais uma exceção, foram "instaladas" e recebem "upgrades" (Iraque 2.1, Afeganistão 1.0, Palestina New). Inimigos abstratos não podem ser derrotados (terror, drogas, deuses, grupos em rede), só resta criar mundos e redes de resistência permanentes. "Contra a miséria do poder, a alegria do ser." Ano 2 da Guerra Global Permanente.
(Ivana Bentes)
FENÔMENO UNIVERSAL, a guerra deixou de ser pensada como natural para ser integrada ao terreno da reflexão política. Sua eclosão marca o fracasso dos homens em resolver seus conflitos segundo critérios tidos como razoáveis, justos ou racionais pelas partes envolvidas. Primariamente a guerra envolve Estados, e não indivíduos, mas pode se estender ao interior das nações sob a forma de guerra civil. Historicamente, assinala a dificuldade para a constituição de uma comunidade internacional regida por normas jurídicas estáveis, e não pelo interesse imediato e direto de seus participantes. Em sua forma defensiva, a guerra guarda mais proximidade com valores normalmente associados à vida cívica, como o patriotismo e a coragem.
(Newton Bignotto)
GUERRA, EM TERMOS DE HOJE, é uma invasão invisível na qual o inimigo, sem corpo ou fisionomia, cobra soldo sobre tudo o que usamos, vestimos ou comemos e a nós - escravos ubíquos- divide como despojos de batalha.
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Antigamente existia a "declarada", formalmente convencional. Depois, a "de guerrilha", imprevisível quanto a tempo, espaço e participante.
(Tom Zé)
(ESSA GUERRA QUE SE PREPARA.) Nem toda guerra é injusta. A guerra contra Hitler (apesar dos erros e crimes dos "aliados") foi uma guerra justa. Como as de libertação nacional. A guerra que se prepara é injusta. Saddam é um déspota terrível (guerra química contra os curdos!); ele, de posse de armamento atômico, assustador. O problema -que não é só o do Iraque- não tem solução absoluta; a solução relativa é uma luta real pela democracia e a liberdade, em todo o mundo, a começar pelo caso palestino. O governo dos EUA, de extrema direita, faz o contrário. Ele ganhará a guerra, mas devastará o mundo: haverá mais poderes ameaçadores, mais terrorismo, mais extremismo fundamentalista, dos dois lados.
(Ruy Fausto)
GUERRA É O QUE ESTAMOS VIVENDO desde pelo menos 11 de setembro de 2001. Como cada guerra é diferente das outras, muitos não reconhecem a atual nem entendem que tanto o Afeganistão quanto o Iraque não são guerras, só batalhas. Guerra é o que não se escolhe, mas é preciso vencer, pois, mesmo se adiada, acaba vindo. E vem pior. A presente guerra resulta do fanatismo islâmico, do nacionalismo árabe e do oportunismo daquilo que Donald Rumsfeld chamou de "velha Europa".
(Nelson Ascher)
NO PRÉ-CAPITALISMO, era a violência de um povo sobre o outro para obter o butim, reduzi-lo à escravidão ou submetê-lo a impostos. No período da revolução capitalista, foi a forma violenta que os Estados nacionais usaram para definir suas fronteiras, estabelecer colônias e abrir mercados. No capitalismo global (no qual as fronteiras estão definidas e os mercados abertos), é apenas uma forma de irracionalidade muito mais grave do que aquela que já havia nas duas etapas anteriores, porque nelas a guerra era parte constitutiva do sistema; hoje (desde Hitler) é a violência pura.
(Luiz Carlos Bresser Pereira)
ENTENDO POR "GUERRA" todo conflito em que a solução dependa da submissão de uma das partes. Qualquer competição pode se converter em uma "guerra".
(Wanderley Guilherme dos Santos)
O SENTIDO INEQUÍVOCO DE "GUERRA" continua sendo o que designa o estado de beligerância ou o uso da violência entre países. O convencionalismo dessa acepção se ajusta ao fato de que a guerra, nesse sentido, é objeto de convenções e regulações efetivas. E a questão de interesse é agora a de como, além das já velhas práticas de guerrilha, as novidades da singular assimetria no poder militar dos países, o terrorismo, os armamentos nucleares, químicos e biológicos e sua difusão virão eventualmente a redefinir a expressão.
(Fábio Wanderley Reis)
O TERMO "GUERRA" tem sido empregado para significar a luta longa e constante contra um inimigo invisível e disperso, como o terrorismo. É o inferno na Terra, a que a humanidade não renuncia e que produz cada vez menos heróis e cada vez mais vítimas civis. Recurso extremo, quando falha a diplomacia, seu conceito clássico atualizado diria que é um conflito violento entre grupos organizados ou entre países, em que o emprego de instrumentos cruéis leva à morte e à destruição pelo menos num dos lados.
(João Almino)
AÇÃO POLÍTICA MÁXIMA DO ANTI-HUMANISMO, forma de reorganização da dominação em qualquer período, barbárie concertada com o Direito Internacional, movimento de reorganização da economia e do poder.
(Tarso Genro)
SEGUNDO HERÁCLITO, o combate é pai de todas as coisas; dessa persperctiva o século 20 é heraclitiano, pois nele, a guerra se tornou o horizonte fatal do pensamento. A luta mortal e a mobilização total tornaram-se a forma corrente -alguns dizem única- da vida do Estado à qual todos devem se submeter. A guerra tornou-se objetivo e meta. Eis por que tantos estariam de acordo com Napoleão sobre uma constatação: a guerra é a forma moderna da tragédia. Impalpável, ela é o nome genérico para um vasto desastre humano. Ao descrever Waterloo, Victor Hugo sintetizou o fato e o conceito: "Quem ganhou a batalha não foi Wellington ou Blüchner, que não combateu; mas Cambronne". Ao responder ao pedido de "Bravos franceses, rendam-se!", ele resumiu a coisa: "Merda!".
(Mary del Priore)
A GUERRA, PELO MENOS A MODERNA, é a manobra essencial dos impérios do capital em crise de expansão. Para Conrad, olhando para o imperialismo britânico, é simplesmente "o horror". Para Copolla, olhando para Conrad e para os Estados Unidos no Vietnã, também. Para o fascista Marinetti é a "higiene do mundo". O cinismo fascista sempre sonha em embelezar o horror do qual a guerra é fonte e resultado. Fico com Goya, que viveu o horror e a sujeira das guerras napoleônicas, para quem ela é o mais terrível monstro produzido pelo sonho da razão. Hoje esse monstro mora nas Bolsas, no mercado e na Casa Branca.
(Francisco Alambert)
Fonte: http://www.cefetsp.br/edu/eso/brevissimodicionarioesquerdaguerra.html
Poxa Marise, esse lugar é belíssimo, gosto do que você escreve. Virei outras vezes.
ResponderExcluirTenha uma excelente semana.
Prof. Israel,
ResponderExcluirÉ uma honra receber a sua visita e agradeço por seguir o meu blog.
Venha quando quiser, será sempre uma honra receber a sua visita.
Uma excelente semana!!!
Abraços,
Marise.