segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Um 2010 de verdade, por Marcos Rolim*



É preciso cuidado com as palavras, porque, quando as empregamos, atribuímos significados às coisas e, assim, começamos a valorá-las. Os brasileiros deveriam se sentir ofendidos quando uma matéria jornalística chama os atos de tortura e as execuções patrocinadas pela ditadura militar de “excessos”. O primeiro problema aqui é que a maioria dos leitores não se sentirá incomodada com a escolha desta palavra. É possível que os próprios jornalistas que ainda a usam não se deem conta de que esta escolha não é apenas infeliz, mas que ela já insinua a moldura na qual o horror se desmancha no ar. Uma autoridade se excede quando, por exemplo, aplica a força legítima além do necessário para a contenção de ameaça iminente. O excesso, assim, guarda relação com a aplicação desproporcional da força. Prender alguém ilegalmente, conduzi-lo a uma câmara de tortura, submetê-lo durante semanas infinitas ao pau de arara, ao choque elétrico, aos espancamentos, arrancar suas unhas, amassar seus testículos; por fim, matá-lo e, depois, desaparecer com o cadáver não é “excesso”, é crime contra a humanidade, vergonha e covardia.


A maioria dos brasileiros não se importa com o que ocorreu durante a ditadura militar. As gerações mais novas talvez nem saibam o que é uma ditadura e, ainda hoje, há quem manifeste “saudades” do período; o que não é apenas triste, mas desesperador. Trata-se de resultado previsível, entretanto, pois a verdade sobre o que ocorreu ainda não foi contada.

Temos vários livros importantes sobre o tema, milhares de depoimentos, documentários e filmes, mas não temos uma verdade jurídica. Vale dizer: cada um conta o que quer e todos os relatos seguem sendo considerados apenas “versões”. Como regra, os textos falam aos convertidos e assim seguimos em Pindorama por sobre a maior das “pizzas”: aquela montada pelos que repetem que a Anistia “sepultou os acontecimentos”. Anistia é perdão, mas perdoar não é o mesmo que impedir o acesso à verdade. Já disse que não vejo sentido na pretensão de punir os responsáveis pelos crimes praticados há mais de 30 anos. Mas tenho como revoltante seguir convivendo com o silêncio oficial, com este pacto de mediocridade firmado pelos políticos e os comandantes militares; um pacto estabelecido – como convém – longe do escrutínio público, exatamente para que ninguém soubesse, para que a verdade jamais viesse à tona.

A proposta incluída no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) de formação de uma “Comissão de Verdade” para investigar e reconstruir episódios de violação durante o período ditatorial é uma iniciativa elementar, óbvia até, que deveria ter sido tomada há muitos anos. Ela se situa acima de qualquer ideologia e deve implicar o levantamento de todas as violações cometidas, não importa por quem, nem em nome de quê. Como uma das pessoas que auxiliou a redigir o Programa, afirmo que ela não tem a ver com punição, tem a ver com a história do Brasil e com a chance de afirmar a dignidade ali onde, até agora, só existe dor e humilhação. As vozes que se erguem contra esta iniciativa não são apenas as vozes de um passado tenebroso que, infelizmente, sequer é passado. São as vozes de um país que oscila entre a civilização e a barbárie, entre o direito e o privilégio, entre o respeito e o preconceito, entre a ordem democrática e a ordem das baionetas... e que prefere, sobretudo, a mentira.

marcos@rolim.com.br

* Jornalista
** Li este artigo na Zero Hora e também no Blog Da Prof. Elaine

Fonte: Jornal Zero Hora
Imagem:
mr-rafa.blogspot.com/2008/12/mentiras-e-verda..

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