sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Os deveres garantem os direitos e a boa convivência

Jaques Alfonsin
“Os jovens só querem direitos e não aceitam deveres”. Em algum lugar nós já ouvimos esta afirmação. Na escola, em casa, no grupo, na comunidade a questão dos “direitos e deveres” é tema destacado dos debates e até de brigas.
Pois, nesta entrevista, queremos contribuir para uma “briga” saudável em torno deste assunto, que sugere muito debate teórico e opções de vida. Colabora conosco o advogado Jaques Alfonsin.

Jaques Alfonsin,
advogado, presta assessoria jurídica popular em Porto Alegre, RS, e coordena a ONG “Acesso Cidadania e Direitos Humanos”, em defesa de diversas entidades e dos pobres, em geral.


Mundo Jovem: Por que nós temos que ter deveres?

Jaques: O que está na base dos deveres é a própria exigência da convivência social. O princípio fundamental ético jurídico é o da reciprocidade, ou seja, a cada vantagem que eu tenho, para não usar diretamente o termo direito, pode haver uma desvantagem dos outros.

Então eu não posso exercer um direito, uma vantagem, na medida em que no próprio exercício dessa vantagem eu prejudique os demais. Na verdade, está contido nos deveres um preceito evangélico, pode-se dizer: “não faças nunca aos outros aquilo que não queres que façam para ti”, ou, faça sempre aos outros aquilo que tu queres que seja feito para ti.

Não se compreende nesse jogo de convivência o direito sem os deveres. A cada direito corresponde um dever, aliás,o filósofo Kant ja dizia isso bem claro.


Mundo Jovem: Os deveres não atrapalham a liberdade?

Jaques: Pelo contrário. Os deveres justamente, por este princípio da reciprocidade, eles favorecem a boa convivência, favorecem o bom relacionamento. Em vez de serem vistos como imposição, na medida em que eles são conscientizados pelos jovens, eles dão caminho, oferecem caminho para o exercício de uma liberdade que não fira outras liberdades.

Então, o dever deve ser visto como uma coisa positiva e não como uma coisa negativa, um cerceamento da liberdade. Na medida em que eu exerço a minha liberdade de maneira compatível com a liberdade alheia, todos nós seremos livres. Por isso que o mundo de hoje é tão carente de deveres. Porque um dos principais direitos, que é o direito de propriedade, não cumpre o seu principal dever que é sua função social.

O desequilíbrio moderno, da globalização, que gera tanta desigualdade e pobreza, é gerado pelo exercício do direito, um direito que extrapolou, que abusou do seu leito normal. É um direito que desrespeita o outro na medida em que é indiferente ao outro. A luta pela terra que está se travando atualmente no país é o melhor exemplo disso.


Mundo Jovem: Hoje se diz que os jovens têm direitos demais. Isto é verdade?

Jaques: Essa é uma crítica que o adulto faz. Mas, na verdade, ele está cuspindo para cima quando diz isso. O jovem de hoje se espelha no exemplo do adulto. Quando há muito excesso por parte do jovem, muitas vezes é uma reação ao que ele vê no excesso praticado pelo adulto.

Ele foge de uma sociedade que exige dele o cumprimento de deveres, quando ele vê toda a sociedade de adultos também em descumprimento de deveres. É um mundo todo regido por exigências sobre os outros, que não são cumpridas pelas pessoas que exigem.

Exigências dos grandes empresários, dos grandes banqueiros... chega-se a chamar isto de crédito. O direito mais protegido pela civilização é o fato de alguém estar sempre condicionando o outro na situação de devedor.

O jovem, inconscientemente, reage contra essa contínua cobrança de que ele é que deve as coisas. Ele também quer ter a sua liberdade.

E às vezes exagera, não há dúvida. Tem muito jovem que foge para a droga, para o excesso do álcool, para a libertinagem, para a violência. Mas, na verdade, ele também é levado a isso pelo exemplo que vê do adulto.


Mundo Jovem: Uma pesquisa constatou que cerca de 60% de brasileiros não conhecem nenhum direito da Constituição. É possível exercer a cidadania sem conhecer os direitos?

Jaques: Não. Essa é a maior das contradições. O artigo primeiro, parágrafo único da nossa Constituição diz: “todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por seus representantes nos termos desta Constituição”.

Então, se todo poder emana do povo, nós teríamos que primeiro tratar de identificar esse povo, de quem nós estamos tratando aqui.

Caso contrário corremos o risco de a sociedade continuar mentindo para si mesma, colocando na Constituição uma coisa que todo mundo sabe que não é verdade. Hoje, se verifica que grande parte dessas expressões bonitas, como “todo poder emana do povo”, não são uma tentativa de transferência de poder para o povo, mas uma tentativa de legitimar a própria Constituição, ou seja, dizer que nós vivemos num estado democrático de direito, porque a Constituição diz isso.

Mas nunca vamos conferir que poderes tem este povo. Que poder tem o povo excluído, por exemplo? Quais são os poderes que derivam dos poderes sociais. Nós podemos bater na porta de um juiz e pedir comida ou casa ou coisa que o valha? Num estado efetivamente democrático de direito isto nem seria questionado. São direitos que fazem parte da vida da pessoa humana. O direito à vida pressupõe o direito aos meios de vida.


Mundo Jovem: E os direitos são garantidos para todos?

Jaques: Evidentemente que não. Os chamados direitos humanos de primeira geração, como a liberade de crença, a liberdade de opinião, de reunião... esses direitos pressupõem que o Estado não faça nada. Ele tem é que respeitar.

Agora, a maior parte dos direitos ligados à vida pressupõem uma ação do Estado e não uma omissão. Eu não posso ter educação, saúde, transporte, segurança... se o Estado não se mexer a meu favor e não der prioridade a isso.

O desequilíbrio entre o poder de ação do Estado a favor dos direitos sociais e o dever de omissão do Estado a favor dos direitos de primeira geração, dos direitos civis e políticos... esse desequilíbrio é toda a crise do Estado moderno; mostra que o Estado moderno falha na sua principal finalidade.

Porque não se pode dizer que os direitos humanos fundamentais, educação, saúde, segurança, transporte... estejam atrás, nem ao lado, nem na frente da lei. Eles estão acima da lei. O Estado e a lei existem em função destes direitos.


Mundo Jovem: Não existe o certo e o errado, o que existe é o chato e o divertido”, diz uma frase de um filme. E uma cantora brasileira dizia: “não existe o certo e o errado. Você faz o que gosta e acaba dando certo”. Neste ambiente, nesta mentalidade, como trabalhar a questão dos direitos e deveres?

Jaques: É um ambiente medíocre de ausência de valores. Talvez o principal dever do qual o jovem tem que ter consciência é de que ele é responsável pela construção da cidadania. A dignidade humana é indelegável. Ele não pode esperar isso do professor, nem do pai, nem da mãe. É ele que é responsável por isso e é ele que é responsável pelas gerações de amanhã.

Portanto, o principal dever do jovem é contestar esta desordem que está lá fora. Um princípio jurídico antiqüíssimo é de que a obra da justiça é a paz. Nós não temos paz porque não temos justiça.
Então, o principal dever do jovem é lutar pela justiça. Estou falando em justiça no sentido de dever, não é o judiciário, o juiz, o promotor. Este é o aparato público da justiça.

A justiça mora dentro de cada um de nós. O jovem que não sente crepitar dentro de seu coração esta chama ardente da transformação, está aderindo a este mundo de mediocridade. Ele tem que saber que toda a possibilidade de vida dele e futura depende dele exclusivamente, ele é que tem que dar essa resposta.

A dignidade humana não pode ser delegada ao puro diletantismo ao ponto de dizer que só existe o chato e o aborrecido. Isso aí é muito fácil de se dizer, mas sepulta toda possibilidade de humanidade futura.


Mundo Jovem: Não deveria fazer parte do curriculo escolar o estudo da Constituição?

Jaques: Há todo um movimento no país para se introduzir a chamada cadeira de Direitos Humanos no ensino médio e até no fundamental. Com a idéia de que desde o início as crianças e os jovens aprenderem que a Constituição é uma lei criada pelo povo e por isso eles têm que se valorizar a si mesmos e conhecer esses direitos.

A ignorância sobre esse assunto favorece a reprodução de um sistema que tem interesse de manter a pessoa ignorante dos seus direitos. Grande parte da desordem estabelecida são atividades econômicas ilegais porque descumprem, por exemplo, esse princípio da função social da propriedade. Se a propriedade tivesse uma função social, ela não geraria os efeitos que está gerando em matéria de concentração de terra, destruição do meio ambiente, de ataque à vida ainda antes de nascer ou na hora de morrer.

Se o horizonte oferecido ao jovem for sempre um horizonte de mercado e a pergunta que ele faça quando entra na escola ou entra na universidade é “qual é o mercado que me espera”, isso não nos vai levar a lugar algum.

Vai acentuar a desordem que nós vivemos. A verdade é a seguinte: os adultos falam muito do jovem, mas o principal defeito está em não reconhecer que a atitude do jovem é uma reação à atitude do adulto. Nós temos que confiar no jovem.

Existe dentro dele um potencial de transformação. Eu vou dar um exemplo: todos os sábados de manhã se reúnem aqui alunos do Direito, usando um dia de descanso e diversão, para estudar os meus processos, para estudar e debater como melhor proteger o direito dos pobres.



Quando o direito gera desigualdade

A origem histórica dos direitos é muito discutível. Agora, uma coisa é certa: o direito sempre é necessário onde se ausenta o amor. Se todos nos amássemos, não precisaria haver direito. Rousseau, no seu livro “O princípio das desigualdades entre os homens”, chega a dizer que quando a primeira pessoa cercou um pedaço de terra e disse “isto aqui é meu”, deveria ter-se convocado toda a humanidade para dizer: “olha, aqui está nascendo o direito de propriedade, que vai gerar muita infelicidade”. Justamente porque tenho que respeitar o outro como outro, como pessoa humana...

O exemplo que a mãe dá em relação ao amor do filho é o melhor que existe. O amor materno não necessita de direitos.

Nós não necessitamos de direitos para saber que a criança, que vive em contato com a mãe, se alimenta do corpo da mãe desde que nasce, também reflete aquilo que está no evangelho, quando Jesus Cristo diz: “fazei isso em memória de mim”, ou seja, eu me deixo consumir pelo outro. Na medida em que há essa consciência, não há necessidade de direito.

O direito nasceu da falta de amor que existe entre as pessoas. Foi necessário para remediar a falta de amor. Se não nos amarmos uns aos outros, o direito vai ser necessário.


Fonte: Jornal Mundo Jovem - Entrevista Publicada na edição 340, setembro 2003

2 comentários:

  1. É, no mínimo, bem curioso como certas realidades sociais são transversais, independentemente da nacionalidade.
    Excelente post e extremamente oportuno! Obrigada, Marise.
    Um grande beijinho.

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  2. Olá

    Bem interessante esta postagem.
    O nosso amigo Jacques além de advogado popular é um educador.
    Os blogues são uma experiência educativa também, não é? De geração para geração, acredito muito nesta idéia.
    Um abraço

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