Quando há padrões elevados de profissionalismo, a mera competência produz bons resultados. Quando não há padrões elevados de profissionalismo, mesmo o melhor dos profissionais vê o seu trabalho sabotado ou pura e simplesmente anulado pela inépcia dos seus colegas.
A diferença crucial entre o que parece e o que é, e entre o conhecimento superficial das coisas e o conhecimento íntimo das coisas, só pode adquirir-se quando se tem uma experiência profissional de excelência numa qualquer área. Há uma grande diferença entre ler umas coisas sobre estrelas nas horas vagas e ser astrofísico ou astrónomo. A diferença é saber as coisas realmente, em vez de as saber pela rama.
O profissionalismo, contudo, não se dá bem em sociedades da privacidade como a portuguesa. Chamo sociedades da privacidade a sociedades nas quais a vida privada detém o monopólio das atenções das pessoas. Numa sociedade assim desempenha-se uma profissão sem profissionalismo nem gosto, sem excelência nem virtude, porque toda atenção, energia e investimento afectivo está na vida privada. A vida profissional é apenas uma chatice que é preciso aturar por não se poder viver dos rendimentos. Nas sociedades da privacidade o mundo é visto de maneira fundamentalmente infantil. As crianças, efectivamente, não trabalham: o princípio do prazer é omnipresente e só com o tempo vão atendendo ao princípio do trabalho. Nas sociedades da privacidade o princípio do trabalho é visto como as crianças o vêem: mera chatice inevitável, e não fonte de realização, florescimento e virtude.
Nas sociedades da privacidade não há profissionalismo. Comprar um carro é muitíssimo mais importante do que ser competente na nossa profissão. E a discussão pública, nas sociedades da privacidade, é mero latido inconsequente porque ninguém realmente sabe coisa alguma do que está a dizer, e nem sabe que não sabe porque não sabe o que é saber realmente de alguma coisa, em termos profissionais. Nas sociedades da privacidade a discussão pública é apenas conversa fiada de amadores e quem fala acaloradamente sobre algo não tem qualquer profissão relacionada com isso de que fala com tanta certeza.
Sendo verdade que os níveis de corrupção estão fortemente correlacionados com a sociedade da privacidade, precisamente por não se reconhecer outras fidelidades que não as privadas, é contudo significativo que não ocorra à generalidade dos críticos que grande parte dos problemas dos governantes, das empresas e das escolas não é a corrupção sofisticada mas a incompetência simples, geralmente baseada num conhecimento das coisas pela rama. O conceito de incompetência, contudo, só tem força em sociedades que prezem o profissionalismo. Nas sociedades da privacidade a incompetência é admitida como a condição natural de qualquer profissional e chama-se "desenrascanço".
Ironicamente, a entrega profissional a um trabalho é uma das condições necessárias para uma vida humana com sentido.
Universidade Federal de Ouro Preto
Publicado no jornal Público (25 de Março de 2008)
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