terça-feira, 11 de agosto de 2009

Entrevista Jorge González - Desconstruindo as estruturas da comunicação

Para os cientistas da comunicação, a "globalização" e a "era da informação" não podem ser chamadas de conceitos, por não serem oriundas de estudos científicos

por Michel Nuñez - fotos Mo March

Confesso que, antes de chegar ao Memorial da América Latina para esta entrevista, muitas coisas me passaram pela cabeça. Dentre elas, qual seria a dinâmica e a linguagem que utilizaria numa conversa com um "cientista da comunicação". No entanto, ao encontrar Jorge González me deparei com um sujeito alegre, vestido com calça de sarja cheia de bolsos e uma camisa de botão. Logo de cara, percebi que estava diante de um cientista moderno, muito diferente dos que costumo ver pela televisão: sérios, com cabelos brancos, trajando terno e gravata e um avental branco por cima da roupa. Porém, um detalhe me chamou muito a atenção: seus óculos, que além de redondos, como os de John Lennon, tinham lentes alaranjadas. Talvez isso fosse um presságio do que viria logo adiante.

Nesta entrevista, realizada durante o II Colóquio Brasil-México de Ciências da Comunicação, evento promovido pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Jorge González fala sobre os avanços da Ciência da Comunicação, a contribuição que essa modalidade de ciência pode trazer para a sociedade e sobre os estudos que vêm sendo realizados por cientistas brasileiros e mexicanos no segmento. Desde 2004, Gonzalez coordena o Programa de Epistemologia da Ciência e Cibercultura e o Centro de Investigações Interdisciplinares de Ciências e Humanidades, da Universidade Nacional Autônoma do México.

Confira os principais trechos da entrevista e entenda por que os conceitos que adoramos usar quando discutimos assuntos relacionados à internet e à Era da Informação se transformaram em "sem-ceitos". Pelo menos na visão do cientista.

A Ciência da Comunicação surgiu na década de 1970. O que ela trouxe de novo e qual a contribuição dela para o desenvolvimento de uma sociedade?

González Depois de décadas de estudo, chegamos à conclusão de que é possível estudar, de forma integrada, a relação comunicação- informação-conhecimento, como ponto-chave da inteligibilidade de todo o vínculo social. Com trabalho científico podemos começar a entender como se compõe, como se transforma, como se desestrutura e volta a se estruturar uma sociedade. Ao contrário do que muitos pensam, nosso foco não está na produção ou no poder dos meios de comunicação, mas, sim, na importância da relação comunicação-informação- conhecimento para a composição e o desenvolvimento de uma sociedade.

" É possível estudar a relação entre comunicação, informação e conhecimento como ponto-chave da inteligibilidade do vínculo social "

Muitas pessoas colocam esse trabalho como um meio de estudar a cultura de um povo. Isso procede?

González Na verdade, o conceito "cultura" ficou pequeno em comparação ao universo de estudos no qual estamos inseridos. A cultura por si só é uma mescla de várias culturas. Não existe cultura "pura", pois ela se recompõe sistematicamente com o passar do tempo. Hoje, estamos trabalhando um conceito chamado de "ecologia simbólica", que nos permite estudar a relação comunicação-informação-conhecimento sob o ponto de vista de produção, organização e geração de estruturas e instituições sociais. Na verdade, estamos envolvidos em estudos que dificilmente são tomados por sociólogos e antropólogos, como a memética, por exemplo. Enfim, estamos tocando em estruturas autorreferenciais que vão se transformando ao longo do tempo.

Qual o maior desafio enfrentado pelos profissionais da área?

González O maior desafio está em conseguir desvincular a Ciência da Comunicação dos meios de comunicação. Trata-se de um assunto complexo, pois nosso trabalho está focado em estudar a importância desse tripé (comunicação-informação-conhecimento) na criação, no desenvolvimento e evolução de todo e qualquer tipo de sociedade, desde a mais primitiva até a mais contemporânea. Como nossa profissão é bastante nova, precisamos, antes de tudo, construir uma base sólida que nos permita, no futuro, enxergar novos horizontes.

"Tecnologia da informação é um conceito vago. O termo correto é ´tecnologia do conhecimento´, pois por meio da tecnologia acessamos as informações"

O que chama de base sólida?

González Não há como fazer ciência sem teorias, metodologias e fontes de estudo. O que estamos tentando fazer há 30 anos é construir uma estrutura forte para, assim, realizar estudos mais claros e objetivos. Hoje, por exemplo, vemos muitas teorias de comunicação baseadas em descrições. Além de torná-las pouco compreensíveis, torna difícil criarmos estruturas de estudo, ou seja, as metodologias. Se quisermos realmente que a profissão deslanche, precisamos trabalhar com transparência e bastante objetividade, para que todos, até os mais leigos, conheçam o objeto estudado e entendam o porquê do trabalho.

Você costuma comentar em suas palestras sobre a importância de se diferenciar o objeto de estudo em vez de apenas descrevê-lo. O que isso representa de maneira prática?

González Hoje, o mundo está repleto de conceitos que, no meu modo de ver, são "sem-ceitos". Ou seja, não podem ser chamados de conceitos exatamente por não serem oriundos de estudos científicos. Dentre eles está a tal da "globalização", a "cultura de massa", a "era da informação" e assim por diante. Geralmente, quem rotula isso são os jornalistas, que se sentem na obrigação de criar algo novo.

O problema é que esses "sem-ceitos", ao serem jogados na mídia, ganham força e se tornam palavras "sexys". E como o consumidor de informação adora tudo o que é sexy, atrativo, acaba incorporando os termos ao seu discurso sem saber ao certo o que isso representa. Por outro lado, a ciência trabalha anos e anos pesquisando um objeto. Porém, esses estudos só têm validade quando os cientistas conseguem diferenciar o objeto estudado dos demais já existentes. Eu sempre uso a água como exemplo. Para a grande maioria, não importa qual a composição da água. Na verdade, poucos sabem que ao beber água estão bebendo uma porção de H2O, que é composto por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.

Essas mesmas pessoas não têm o mínimo interesse em saber o porquê de cada nomenclatura. Porém, é conhecendo cada composição que conseguimos diferenciar o H2O do H2O2, que é um peróxido de hidrogênio, mais conhecido como água oxigenada. Esse desconhecimento, no entanto, pode levar a uma lesão extremamente grave, pois ao beber um gole de H2O2, que é um líquido altamente oxidante, a pessoa pode simplesmente destruir a garganta. Por isso, a importância de se diferenciar os objetos de estudo. Se nós, cientistas da comunicação, realizarmos estudos claros e objetivos ao ponto de conseguirmos diferenciar um estudo do outro, automaticamente construiremos categorias de estudos. Só assim daremos nossa contribuição à sociedade como um todo.

Sendo a Era da Informação um "sem-ceito", existe algum conceito que defina melhor esta atual época?

González Antes de qualquer coisa, é necessário dizer que a informação existe desde os primórdios. Portanto, todas as "eras" foram recheadas de informação, não apenas a atual. Se tomarmos isso como um objeto de estudo, certamente chegaremos à conclusão de que se trata de um conceito híbrido, que não acrescenta nada em termos científicos. Seguindo o mesmo caminho está a "tecnologia da informação". Para mim, esse termo não significa nada, é muito vago. O termo correto é "tecnologia do conhecimento", pois por meio da tecnologia é que acessamos as informações que, ao serem bem-entendidas e bem-interpretadas, se transformarão em conhecimento.


Você está no Brasil para participar do Segundo Colóquio Brasil-México. Por qual motivo dois países aparentemente distantes sentiram a necessidade de discutir os temas relacionados à Ciência da Comunicação?

González Todo intercâmbio é importante, independentemente da posição geográfica ou da modalidade de ciência de cada um. Porém, desde o primeiro encontro houve uma afinidade muito grande entre os cientistas. Isso se deve, em grande parte, à semelhança dos problemas sociais existentes nos dois países. Dentre eles estão: as diferenças, as desigualdades e injustiças sociais. Por outro lado, não podemos limitar esse trabalho ao Brasil e ao México. Acredito que determinar territórios de estudos não seja o melhor caminho. Temos de tomar esses encontros com um ponto de partida para o desenvolvimento de estudos bilaterais e colaborativos, que tragam benefícios não só para ambos os países, mas para toda a América Latina.

Qual é a importância dos "meios de comunicação" para uma sociedade?

González Para mim, o termo "meios de comunicação" não condiz com o papel que eles exercem dentro de uma sociedade organizada. Na verdade, eles não são meios nem comunicação. São sistemas de comunicação, ferramentas que permitem a produção de um vínculo social. Não quero dizer que elas não tenham sua devida importância. Nosso trabalho consiste, também, em estudar a integração e a relação desses elementos. Todas as "ecologias simbólicas" dependem ou envolvem "psicologias de comunicação", "psicologias de informação" e "psicologias de conhecimento", que são perfeitamente estudáveis no passado, no presente e no futuro. Isso implica em entrar em detalhes das formas de comunicação mais tradicionais, herdadas e incorporadas às atuais sociedades, como as conhecidas: cultura de informação, cultura de comunicação e cultura de conhecimento.

Atualmente, até ônibus e trens de metrô têm se tornado meios de comunicação. Você acredita que esse "bombardeio" de informações trará algum malefício à sociedade no futuro?

González Ainda tenho minhas dúvidas se estamos vivendo sob excesso de informação. Em minha opinião, o que está acontecendo é que as empresas que se dedicam a fazer comunicação transformaram-na num produto totalmente comercial, até por questão de sobrevivência. Até uma mesa de bar virou motivo para aplicação de logomarcas e campanhas publicitárias. Com certeza não há mais conteúdo na informação. Para que a mensagem seja absorvida com maior facilidade, é necessário que as informações cheguem ao destino com maior rapidez e consistência. E quanto mais mastigadas, melhor. Assim, livra o usuário do "pensar". Talvez o maior problema que podemos enfrentar no futuro seja essa falta do "pensar".

No caso da internet, ela pode ser vista como uma categoria de estudos?

González Esse é o maior desafio para nós, cientistas da comunicação. Não há dúvidas de que a rede mundial de computadores nos trouxe benefícios. Porém, precisamos pensar o assunto com bastante racionalidade. Na infinidade de informações existentes na internet vejo que há mais ruído do que informação. Ou seja, nem tudo o que lemos é algo verdadeiro, legítimo. É comum vermos definições diferentes para um mesmo objeto. Isso, em minha opinião, traz imprecisões que podem ser altamente maléficas para o desenvolvimento de uma sociedade organizada.

Sendo assim, há pouca informação de qualidade na rede mundial de computadores?

González Sem dúvida. A partir do momento em que cada um de nós pode publicar algo na internet, tornase difícil saber qual a qualidade e a veracidade dessas informações. E a única maneira de diferenciarmos informação de ruído é quando processamos a informação. Ao contrário de antigamente, quando os livros e as enciclopédias eram acessados por poucos, a internet veio para democratizar isso. No entanto, vejo que há muitos investimentos em infraestrutura tecnológica e pouco investimento em infraestrutura humana. Disponibilizar internet a todos é algo realmente fantástico sob o ponto de vista social. Mas o maior problema está no processo de uso. Ou seja, não adianta nada a pessoa saber ler e escrever e não saber se o objeto que está pesquisando na internet tem ou não fundamento científico, se a informação encontrada tem ou não qualidade, veracidade. A informação só se torna informação quando nós lhe damos um formato. Sem isso, ela torna-se algo vazio, sem sentido.

Está sugerindo que a má qualidade da navegação está relacionada à má formação acadêmica do usuário?

González Não necessariamente isso. O que quero dizer é que, independentemente da condição social e da formação acadêmica, todos estão tendo acesso à internet: o rico, o pobre, o índio, o universitário, o analfabeto. Com essa enorme variação no perfil do usuário torna-se praticamente impossível exigir que todos tenham a mesma percepção e façam a mesma interpretação do mesmo conteúdo. Imagine a seguinte cena: um índio e um homem branco sentados num ponto de ônibus de uma cidade grande qualquer.

Minutos depois chega ao ponto um ônibus pintado de vermelho e com a logomarca de uma cerveja. Para o índio, que não sabe o que significa aquela marca, a novidade está no ônibus, algo incomum em sua tribo. Já o homem branco, acostumado a ver ônibus em sua cidade, se prende mais à propaganda, que é a única novidade que lhe vem aos olhos. É exatamente a essa estrutura humana que me refiro. Num universo em que todos vêm a mesma coisa, o que vai fazer que aquele conteúdo seja bom, de qualidade e represente exatamente a mesma coisa para ambos os indivíduos é a capacidade que cada um tem em entender o que aquilo realmente significa.

Por isso, mantenho o que disse: para que a internet seja mais eficaz como sistema de comunicação é preciso que haja uma qualidade melhor na percepção e interpretação dos objetos, pois não é o objeto que informa algo. É o pensamento que transforma a visão em informação.

"Os meios de comunicação não são meios nem comunicação, mas ferramentas que permitem a produção de um vínculo social"

Atualmente, você está realizando um estudo sobre o desenvolvimento da cibercultura no México. Em que consiste esse estudo?

González Consiste em estudar como uma comunidade emergente de conhecimento local se relaciona com as novas tecnologias. E de que maneira a chegada de novos sistemas de comunicação influencia no desenvolvimento da mesma comunidade. O trabalho é tão complexo que hoje estou estudando uma civilização que nasceu, cresceu e se estruturou no meio do deserto mexicano. Muitos comentam que meu trabalho está mais para arqueologia do que para ciência. No entanto, minha felicidade está em trabalhar com pessoas e estudar o antigo, sem ter a obrigação de falar da evolução das máquinas.

Pode revelar alguma descoberta obtida com esse trabalho?

González Muitos pensam que o desenvolvimento da cibercultura está relacionado ao desenvolvimento da internet. Mas, após anos de estudos, chegamos à conclusão de que são totalmente opostos. Ao desenvolver-se em sociedades autossuficientes, organizadas e que produzem seus próprios sistemas de comunicação, a cibercultura propõe a criação de uma estrutura única e coletiva de interpretação dos objetos. Já a internet propõe exatamente o contrário. Ou seja, a interpretação é altamente individualista: você na "sua" casa, no "seu" computador, diante do "seu" monitor, criando "suas" próprias percepções a respeito de "suas" próprias pesquisas. Enfim, a cibercultura se apropria das tecnologias que, supostamente, foram desenhadas para operar individualmente, para desenvolver uma comunidade "coletivamente".

A cada dia, os novos meios de comunicação distanciam ainda mais as pessoas. Existe a possibilidade disso se agravar nas próximas décadas?

González Gostaria muito de poder responder a essa pergunta, mas só o tempo dirá. Certamente todos somos cúmplices do que nos acontece hoje. E se hoje somos massacrados pelos meios de comunicação, a culpa também é nossa, por não percebermos o que não percebemos. Para que fique mais claro, vou usar meus óculos como exemplo. Eles (óculos) têm lentes alaranjadas e estão sujos. Quando tiro-os do rosto, vejo o dia mais claro e mais limpo. Quando volto a usá-los, vejo o mesmo dia mais alaranjado, com tons de marrom e pequenos detritos, que podem me sugerir que o céu está sujo. Enfim, caso eu não tire os óculos nem para dormir, precisarei que outra pessoa me diga e me mostre o que eu não estava percebendo: que o céu estava azul e limpo. E esse papel de avisar o que não estamos percebendo é do cientista. Ao menos, deveria ser.

Fonte: http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/24/artigo144514-3.asp

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