quinta-feira, 15 de julho de 2010

O poder do palavrão

Como insultar e praguejar em português, com a ajuda de um dicionário, por Luís Antônio Giron*

Qualquer dia é dia de palavrão. Ele é necessário e insubstituível, como disse o sociólogo Gilberto Freyre. Há quem reclame que as palavras de baixo calão invadiram a vida cotidiana de forma irresistível. Jamais se pronunciou tanto palavrão como nos dias de hoje, e com tanta volúpia, afirmam tanto os safados como os guardiões da língua e dos bons costumes. E, de fato, o palavrão (ou “palavrada”, “palavra obscena” ou “palavra-cabeluda”) se intrometeu em todos os registros de fala e todo tipo de conversação. Por que o fascínio pelo “submundo”, pelos “esgotos” da linguagem? Vou tentar responder à questão, recorrendo primeiramente a um livro.

Em 1974, o folclorista pernambucano Mário Souto Maior (1920-2001), concluiu o seu Dicionário do Palavrão e termos afins, agora republicado num caprichado volume da Editora Leitura, de Belo Horizonte. Após um trabalho de dez anos, Souto Maior levantou 3 mil palavrões, entre vocábulos, locuções e expressões idiomáticas. A obra sofreu censurado do regime militar e só foi publicada cinco anos depois, com o início da abertura política brasileira. Segundo o autor, a obra então já se afigurava incompleta, em virtude da criação constante de novos palavrões, “cada dia que passa”. Ao vir a público, já se tratava de um título ultrapassado. O que dirá hoje. Mas isso não importa. O dicionário é o flagrante de um tempo, que continua a ter validade trinta anos depois. A intenção do autor foi dar uma contribuição modesta “ao estudo da linguagem popular, com possíveis relacionamentos a outras disciplinas como a Linguística, a Etnografia, a Psicologia Social e a Sociologia brasileiras”. Ele tentou revestir a obra de toda respeitabilidade possível: citações de intelectuais e um prefácio de Gilberto Freyre.

No entanto, o malfadado Dicionário virou uma espécie de catecismo pornográfico que circulou de mão em mão dos adolescentes no fim dos anos 70. Talvez tenha chegado o momento de entronizar (sem trocadilhos de segundo sentido) Souto Maior como um pioneiro da lexicografia realista. Como ele próprio disse, os falantes da língua criam palavrões diariamente. É tamanha a produtividade fescenina da população que a criação de palavrões muitas vezes supera a das próprias palavras. Se Adão tivesse nascido hoje, ele também teria inventado centenas. Para chegar a seu dicionário, o pesquisador enviou questionários por cara a 3.620 pessoas. Agora seria muito mais fácil – e é curioso que não tenham aparecido desde então obras do mesmo fôlego. O amor pela descoberta era maior quando as dificuldades eram maiores...

Curiosamente, Souto Maior demonstrou que a língua portuguesa é mais pobre em palavrões que outros idiomas. Ela perde para os palavrões em alemão (9 mil) e em francês (9 mil). Em inglês, palavrões e afins são mais usados do que pelos falantes em português, basta ligar a televisão. É preciso dizer que, quando o Dicionário foi publicado, havia menos palavrões em circulação. Mesmo assim, o autor concluiu, com base nas respostas a seu questionário: “criança de hoje ganha da de ontem quanto ao uso do palavrão; e o aumento dos meios de comunicação, como a televisão, foi o motivo mais apontado”. Outras conclusões do nosso “folclorista” (termo igualmente fora de moda) merecem comentários e relativizações: “O homem, o jovem e o pobre falam mais palavrão do que a mulher, o velho e o rico”. Hoje talvez isso não valha mais. A gente ouve cada palavrão dito por mulheres e ricos... “O romancista Jorge Amado foi considerado o escritor que mais usa o palavrão em sua vasta obra literária, na qualidade de um dos mais lidos escritores brasileiros, pois suas edições somaram cerca de três milhões de exemplares em língua portuguesa”. Os nossos jovens autores urbanos atiram aos olhos do leitor todos os palavrões que conhecem e desconhecem. O consagrado Graciliano Ramos dizia adorar palavrões. Mas o autor nacional mais lido atualmente, Paulo Coelho, mantém um discurso olímpico, quase desprovido de termos chulos. “Quase todos falam palavrão; quando não falam, pensam”, afirma Souto Maior, não sem razão. “Um palavrão do Nordeste é uma palavra educada no Sul e vice-versa”. Não vamos entrar em detalhes, mas atualmente os vocabulários de todas as regiões do Brasil estão se unificando e homogeneizando. “O palavrão mais usado entre nós é merda, que é também o mais utilizado pelos franceses”. Talvez isso tenha mudado. O substantivo citado foi substituído por um verbo. Que opine o usuário da língua.

Acho difícil apontar o palavrão mais falado. A variedade parece infinita. Afinal, qualquer palavrão hoje não pode ser mais ser denominado de tabu. Uma exceção é a palavra escrita. Publicação que se preze ainda hoje evita palavrões. Na internet, via blogs e redes sociais, o palavrão virou palavra qualquer - já se banalizou, como se fosse possível dizer assim para um tipo de termo que nasceu da própria banalidade da vida. Antigamente, ele vinha cercado de interditos, o palavrão “dito na hora certa” ostentava uma certa aura. Foi assim que virou moda na década de 60. O vocábulo grosseiro foi elevado à condição de troféu da contracultura. No Brasil a moda foi coibida pela censura do regime militar. Quando a peça Roda Viva, de Chico Buarque, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, estreou no teatro Ruth Escobar em São Paulo, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) promoveu a invasão do teatro em que o espetáculo era levado, e surrou o elenco do Oficina, o público e quem mais estivesse por perto – não sem dizer um monte de palavrões (quem me contou a história foi o líder do CCC , o advogado João Marcos Flaquer, então estudante de Direito do Mackenzie). Isso é irônico, porque aqueles que se indignavam contra a falta de decoro do elenco agiam da mesma forma na vida real. Pura hipocrisia, não é mesmo?

Uma das defensoras do palavrão a ter se levantado foi a atriz Cacilda Becker. Ela estava à frente do Sindicato de Atores e Profissionais de Teatro, e declarou, em citação no prefácio do Dicionário de palavrões: “Quando o palavrão vem dentro de um espetáculo de cultura e atende às necessidades indiscutíveis de esclarecimento do público – em todo o Brasil normalmente culto – faz parte da obra de arte e é absolutamente justificado. Condená-lo é uma atitude, se não hipócrita, ao menos ignorante”,

Por mais que seja uma declaração datada, estrategicamente feita em um momento de censura e tortura de intelectuais, Cacilda Becker continua a ter razão. Não é necessário abusar dos palavrões, até porque eles se desgastam e perdem o valor como qualquer outra palavra demasiadamente empregada. O palavrão veio para ficar, até porque veio antes de qualquer outro vocábulo. E aqui respondo a pergunta que me fiz no primeiro parágrafo. Ele exerce fascínio por ser inevitável. O usuário da língua vive em um mundo precário e imperfeito, vive situações cotidianas em que as emanações dos corpos, a sujeira, os crimes e as tentações aparecem, mesmo que ele queira evitá-las. Ele sente desprezo, ele é tomado de preconceito, ele tem vontade de dizer palavras que talvez não pronuncie, mas pensa. O palavrão é senhor do nosso inconsciente.

Mesmo assim, apesar de seu carisma, até ele cai em desuso. E para este aspecto que quero chamar a atenção. O Dicionário de palavrões e termos afins está coalhado de deliciosas expressões que se tornaram arcaísmos. E o desuso as faz soar quase sublimes. Estou me divertindo ao folhear o volume. Cito algumas expressões. No Nordeste se dizia antigamente “Amália chegou”, quando uma mulher ficava menstruada., e “roer um couro” quando alguém sentia cíúmes.Também lá o órgão sexual masculino era chamado de “badalhoco”, “badalo”, “bacamarte”, “cabeça de frade, “treboçu” , “são longuinho” e por aí afora. No Sul, pênis era “chuí” e “chonga”. Será que algum nordestino ainda chama o órgão sexual feminino de “carteira”, “chiranha”, “chiquita”, “chiruba”, “inchu”, “inhanha”, “nascedouro”, “pão crioulo”.”prissiguida”? Em São Paulo, vagina ainda é “marisco da barra”? Os sinônimos para órgãos sexuais abundam no dicionário. São menos numerosas as locuções verbais que designam ações pouco respeitáveis. No Rio de Janeiro, “ser do amor” significava um indivíduo maníaco por sexo. Quem é pobre mentalmente podia, no Sudeste, “sofrer de diarreia mental”. Viver à custa da amante é “chular” na comunidade portuguesa. “Partir o bolo do céu” era merecer a fidelidade conjugal no Norte.

O palavrão é fascinante porque gira historicamente em torno do ato sexual. Pertence ao domínio púbico (sic). Nesse sentido, estou de acordo com a definição para o termo feita por mestre Mário Gardelin, mencionada no verbete “palavrão”, naturalmente o mais extenso do Dicionário: “Termo com vinculação direta ou indireta à conceituação sexual”. Examinado perto, o palavrão é igual a qualquer outro termo de uma determinada língua. Diria mais, é talvez o mais fiel e castiço dos vocábulos de um idioma, porque ele vem do fundo dos tempos. Não por outro motivo, um dos sinônimos para ele é o substantivo “palavra”. 


*Luís Antônio Giron - Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV.

Fonte: Revista Época

3 comentários:

  1. Oi Marise,
    Estou de volta.... quanto ao texto, voce esta como sempre de parabéns, eu acho o palavrão totalmente desnecessário e na verdade nem gosto muito de estar no meio de pessoas que só sabem se comunicar através deles, mas se formos nos isolar acabamos sozinhos e solitários né?
    Bjs carinhosos
    Márcia

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  2. Cai, assustadoramente, o número de casais de mãos dadas nas cidades grandes; cresce, por outro lado, a imundice da imoralidade nos olhos dos homens, cujo estado de degenerecência moral e de caráter decorre do avanço sofisticado da cultura indecente das sociedades modernas, apelidadas de neo-modernas ou neo-industriais. Aumenta-se, por sua vez, o número de tristeza nas almas das pessoas, que são devoradas pelas torpezas de um cotidiano demoníaco e implantado por uma economia predatória. Por isso o poeta grita, dizendo:


    MÃOS DADAS

    Mãos dadas não importa como
    Nem de que jeito elas são dadas
    O importante é que vão atadas
    Formando o encontro das almas

    Mãos pacientes criando o amor
    Não importa como se agarram
    O importante é que vão juntas
    Cheia de tato, carinho e ternura
    Mãos dadas que tecem uma luz
    Tão divina quanto a luz do Sol
    Formosa luz como uma linda flor

    Mãos que firmes se entrelaçam
    E agora mutuamente fundidas
    Do amor fazem eterna premissa.

    Guina

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  3. "Beijamento" é palavra que não existe; e daí? Quem não pode inventar palavras são os filólogos, mas somente aos poetas tal proeza é permitida, tanto Deus - que ama os Poetas, como pelos anjos - que admira os Poetas, como, também, pelos Santos e Mártires que povoam o reino da celestialidade. Por isso vez em quando faço o que Carlos Drummond de Andrade costumava fazê-lo: invento palavras. No futuro, tais palavras criadas pelos Poetas serão reconhecidas pela semiologia. Afinal, os Poetas sempre são os maiores visionários e os que estão mais à frente do tempo e das ciências humanas, fato que mais impressionava tanto a Freud como a Jung.



    BEIJAMENTO


    Tem no céu profundo do beijo
    Todas as estrelas e eternidades
    - céu beijado mas indecifrável
    Que ao beijar saltamos no ar...

    Impossível maior profundidade!
    Esse oceano de estrelas e mar
    Mundo fantástico e inigualável
    Que é esse Universo do beijar

    Esse salto de mil saltos alados
    Que flutuam e se voam juntos...
    E cada minuto é uma eternidade

    No beijo tem um profundo céu
    Que todo mundo se perde rindo
    Nos lábios um prazer sem igual.

    Guina

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