domingo, 8 de agosto de 2010

O grau da dor, por Flávio Tavares*

Quando os lúcidos cometem alguma irreverência com a lucidez, tudo se transforma em dor e sofrimento. Na vida pública, onde eles escasseiam, a dor pode ser, até, sinal de catástrofe geral. Sim, pois se nem os lúcidos combatem os desmandos, quem estará contra o abuso, a safadeza e a corrupção? Contra o crime, com quem contará a sociedade?

Tive essa sensação de dor aguda, agora, ao ler entrevista do jurista Eros Grau a um jornal paulista, afirmando que a Lei da Ficha Limpa “põe em risco o Estado de Direito” e se rebelando contra as transmissões pela TV dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Recém-aposentado como ministro do STF, onde passou seis anos, ele diz que só os condenados “com sentença transitada em julgado” devem ser impedidos de concorrer às eleições.

Entendo que ele queira preservar o direito dos cidadãos à plena justiça. Entre nós, porém, a praxe é que os “ritos processuais” virem “manobras legais” para protelar os processos ao infinito e criar obstáculos à apuração do crime, protegendo seus autores. Assim, por que não pensar, primeiro, no direito de os eleitores serem preservados do assédio de delinquentes disfarçados de candidatos?
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A Lei da Ficha Limpa busca evitar a aberração de haver candidatos condenados por improbidade e outros crimes. O ex-ministro entende, porém, que outro é o grau de periculosidade e que, ao apresentar candidatos barrados pela Lei da Ficha Limpa, os partidos não atropelam a lei em espera da bênção do Judiciário.

Ao contrário, a Lei da Ficha Limpa, disse ele, pode ser o começo do “perecimento da democracia”. A essa extravagante conclusão, o ex-ministro somou outra: “Televisionar as sessões do Supremo é injustificável e atrapalha”, pois só as decisões judiciais devem ser públicas, nunca os debates.

Mundo afora, as sessões dos tribunais são públicas. Os juízes são os intérpretes da sociedade ao definirem o que é da lei e o que é do crime. A missão do juiz não é a de mago feiticeiro lidando com rezas e poções secretas, mas a da racionalidade de cotejar leis e situações em defesa da sociedade. Se a lei for inaceitável ou esdrúxula, mais razão para o debate aberto.

Por que criar uma aura secreta em torno do STF? Por que encarar a transparência como torpeza repugnante?
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Nos anos da ditadura, havia os “decretos sigilosos”. O “secretismo” servia para perseguir ou beneficiar, sempre ocultando as razões. Alguns resquícios permanecem até hoje, como os “atos secretos” do Senado, em que os senadores nomeiam parentes e apaniguados para cargos de altíssima remuneração sem qualquer função para a sociedade. Outro resquício do sigilo são os “cartões de crédito corporativos”, que altos membros do governo federal esbanjam ao bel-prazer em despesas pagas pelo Estado.

Nada desses sigilos aberrantes, porém, se compara a evitar a difusão dos debates no Supremo Tribunal. Ali estão as esperanças por justiça, não a da formalidade aparente, mas a da interpretação profunda do correto e do iníquo. Por que limitar a publicidade dos julgamentos às poucas poltronas do plenário em Brasília?

O risco ao Estado de Direito está no abuso dos delinquentes e corruptos (ou de seus protetores) aos quais damos nosso voto. Ou não é este o grau perigoso da dor do horror?


* Jornalista e escritor

Fonte: Jornal Zero Hora

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