domingo, 19 de setembro de 2010

O homem que (re)inventou o gaúcho

  
Para marcar as comemorações do 20 de Setembro, o Segundo expõe as fortes opiniões do folclorista e compositor Paixão Côrtes, conhecido como criador e ícone de uma das manifestações culturais mais controversas do país: o movimento tradicionalista.

Segundo O Nacional:

No último 20 de setembro, o Segundo colocou opiniões diferentes frente a frente, em uma peleia histórica: polêmicos em suas colocações, os historiadores Paulo Monteiro e Luis Tau Golin fizeram um verdadeiro panorama da história do tradicionalismo, seja para o bem ou para o mal. Nesse dia, um nome se destacou: João Carlos D'Ávila Paixão Côrtes, o folclorista que se tornou conhecido como uma espécie de "inventor" do gaúcho popularizado em todo estado por volta dos anos 1950.
Por isso, este ano trazemos as palavras do próprio, a partir de entrevista cedida especialmente ao jornal O Nacional pela UPFTV. Falando de suas origens na Fronteira, dos costumes de homem do campo mantidos até hoje, das discussões em torno dos avanços da sociedade em contraste com a rigidez das tradições e a forma como encara aqueles que não compactuam com sua visão, o compositor, radialista e pesquisador nascido em 1927 divide com o público um pouco do conhecimento adquirido ao longo de meio século, e que lhe rendeu mais de 50 obras e prestígio no país inteiro, onde é visto como uma espécie de lenda viva da cultura sul-rio-grandense.

O início na Fronteira: grosso, sim, com orgulho


"Na realidade eu sou um produto atávico com relação às coisas do Rio Grande, pois minha mãe tocava vários instrumentos, e o tronco dos Ávila, todos eles tocam ou cantam. Eu canto um pouquinho por necessidade, mas eu danço. Eu só tinha uma irmã, mais jovem do que eu, que já faleceu, mas a relação de amizade com meus ancestrais tanto por parte de Santana quanto de Bagé, sempre estiveram ligados à vida rural, sou produto da vida rural, não sou urbano, sou grosso do campo."

A herança do campo: "se o povo não conhece suas origens..."

"Minha herança é rural, meus avós eram ligados ao campo, me criei nas estâncias. E isso me fez despertar, com orientação dos meus pais, para a importância que representava a revitalização de conhecimento das origens, e isso de uma forma simples, ingênua e pura da cultura do povo. Se o povo não conhece as suas origens, não pode avaliar com a devida grandiosidade as manifestações de outros povos, por isso não basta ficar no galpão, é preciso sair do galpão para encontrar na sociedade moderna aspectos que consolidem as heranças que nós temos e projetá-las no sentido universal, porque só existe importância na nossa maneira de ser se outros povos nos entenderem. Se eles nos entenderem como somos, nós também teremos a obrigação de entendê-los, e é isso que traz a fraternidade universal."

O dia a dia de um tradicionalista

"Eu não tomo café, tomo mate de manhã cedo. Tenho uma vida normal, minha atividade ligada ao meio rural como agrônomo sempre me levou à convivência mais próxima com o homem rural. A sapiência, o conhecimento, a importância de ser, que eles às vezes também não sabiam que eram as heranças espontâneas, eu procurei colocá-las no devido lugar, e faço até hoje. Uma contribuição a fim de que a cultura popular mereça um questionamento ao lado das outras manifestações universais e importantes da ciência, da literatura e das artes.

O Grupo dos Oito: o estado precisava se reagauchar

"Nós chegamos a Porto Alegre, eu era jovem ainda, com 14 anos, e verificamos que todo aquele meio espontâneo do interior estava ausente na capital. Os grandes meios urbanos estavam sumamente influenciados pelo pós-guerra, em especial a influência norte-americana no falar, nos discos, nos livros, nos jornais, nas comidas, tudo era produto dos vencedores da Segunda Guerra. Então achei que o Rio Grande precisava se reagauchar, procurar suas raízes, sua essência profunda, para dizer: nós também temos direito de mostrar nossas coisas. Então formamos o Grupo dos Oito, lá no Colégio Júlio de Castilho, ou seja, isso começou numa escola, e depois passamos para entidade social fora do colégio, e aí se expandiu o movimento progressivamente. Veio debaixo pra cima, não foi de cima pra baixo. Hoje são 4 mil entidades pelo mundo, e giram em torno disso 5 milhões de pessoas. Deixou de ser galponeiro para se tornar universal, e acho que esta é a missão do movimento da cultura sul-rio-grandense."

No tempo em que homem de bombachas acabava na prisão

"Nós não tínhamos o direito de tomar mate numa praça porque era ofensivo à sociedade da elite porto-alegrense vestir-se de bota e bombachas, isso era motivo de prisão. A polícia pegava por atentado aos princípios da alta sociedade. Inclusive eu, me prenderam certa vez. Encarávamos isso como absurdo, pois era uma herança dos nossos antepassados que deveria ser respeitada, um símbolo de momentos de glória, de decisão."

Tradição x evolução: uma batalha legítima

"Temos que procurar analisar isso no contexto da história. O movimento gaúcho tem que acompanhar a modernidade, não pode ficar preso, mas também não pode fazer modismo. Precisa pegar as raízes da nossa tradição e colocar ao lado de outras manifestações. É preciso que a nova geração, aquela que vai formar a nossa sociedade, mantenha isso."

Para aqueles que não concordam (e aos que fantasiam)

"É preocupante, porque isso é uma inconsciência. Estive várias vezes na Europa e vi lá o povo fazendo a revitalização de suas fontes originais, de poder, de trabalho, de reconstituição de vida, e de cultura também. Isso se obtém quando se tem um alicerce forte, duradouro e consciente. Então tem muita gente fazendo modismo com o tradicionalismo, criando fantasias, alterando costumes, me preocupo com a documentação e a verdade através da pesquisa. Não basta fantasiar-se de gaúcho, quando não sabe nem mesmo a origem dessa palavra."

Contra os falsos gaúchos?

"Esse é um movimento muito jovem, tem apenas 60 anos, dentro do aspecto sociológico, as transições se sucedem. E a sequência dos participantes nem sempre está à altura das resoluções do conhecimento. Então é necessário não fazer só gauchada nem concursos. É preciso saber muito de nossas origens, até mesmo para avaliar esses concursos. Eu acho que a postura da pessoa é condizente com a atitude que ela toma, então não me obrigue a botar bota, bombachas e lenço no pescoço, ou tomar chimarrão e comer churrasco. Essa é uma condição minha, natural, espontânea, e não uma obrigação para justificar alguma coisa."

Imagem: Aqui

sábado, 4 de setembro de 2010

A ação e sua prostituição, por Márcia Tiburi


Marcia Tiburi: A atualidade da Lei de Gerson e o futebol como pedagogia política

Que 2010 seja ano de eleição é questão que põe em cena o devir publicitário da esfera pública. A publicidade é uma desapropriação da política. Se a política é ação, Antonin Artaud disse que a propaganda era a sua prostituição. A publicidade, como totalidade da vida transformada em propaganda, tornou-se a razão geral da esfera pública suplantando o sentido do que antes chamaríamos o político, o universo das relações humanas em que decisões sobre o poder estão em jogo. Daí que o ético, como decisão, esteja sempre relacionado ao político, mesmo que por eliminação. Usemos as expressões o político e a política para tratar dessa diferença de intenções com a esfera pública. Falemos d’a política como profissionalização ou cartelização d’o político. O político, como esfera, seria o espaço de exercício da cidadania individual e coletiva, não o mero exercício do poder no contexto partidário, ou no do crime ao qual se reduz a ação pela corrupção. Nem seria a simples economia independente de um projeto democrático.
E 2010 é também ano de Copa do Mundo. No entanto, mesmo sendo o futebol um excelente negócio também para a publicidade, não podemos dizer que a Copa seja mais questão de publicidade do que de futebol propriamente dito. O futebol parece importar mais para a esfera pública do que o político. Se a política é a quebra do político, o futebol parece se manter ileso em seu sentido. Talvez ele seja reduto da verdadeira experiência do político que foi danificada na política. Nesse sentido, seria possível pensar o futebol do ponto de vista de sua potência pedagógico-política em um país como o nosso? Mas o que será que a política e o político teriam a aprender com o futebol? E o que a publicidade teria a ver com isso?

Terra de ninguém

A sustentação do espaço político como espaço de convivência de diferenças à luz dos direitos dos seres humanos é algo que apenas pode acontecer se tivermos consciência teórica e prática da separação entre o político e o publicitário. Em sua lógica total, a publicidade constitui o mais novo e sutil totalitarismo caracterizado pelo controle do desejo e dos pensamentos, das relações entre indivíduos e instituições com base em ideias ou imagens preestabelecidas transmitidas a massas tratadas – de antemão – como ignorantes. Elas estão para a publicidade como a torcida para o futebol, assim como o povo está para o político. A diferença é que torcida e povo têm um desejo maior do que aquilo que simplesmente lhes é dado. São ativos e não passivos. Claro que para que as massas se tornem conscientes não bastaria extirpar a publicidade da esfera pública, sob pena de incorrer no totalitarismo oposto. É preciso formular a relação entre os dois modos de construir a esfera pública em um sentido dialético, ou seja, da tensão produtiva, mais do que de uma mera dependência inexorável entre publicitário e político.
A ideia de que este é o país do futebol, no sentido da força simbólica que o jogo tem em nossa cultura, pode ajudar a pensar a definição entre nós da ética como sendo um jogo que falta à política, tanto quanto à cultura. Um jogo de futebol é um excelente retrato da ética que podemos aprender, pois ele envolve a responsabilidade de sustentar as regras dos nossos próprios jogos. Ao faltar a ética, não temos mais o político, só a política como terra de ninguém. O campo nunca é essa terra de ninguém e ele tem um guardião que também está na mira do julgamento. Trata-se do juiz que, no jogo de futebol, é o responsável por fazer valer as regras. Faltas em uma partida sinalizam não apenas uma penalização, mas o limite da ação que todos devem respeitar. Cartões amarelos ou vermelhos são ícones claros de ações indesejadas. Na política as coisas são diferentes. Faltas políticas, como propaganda fora da época permitida, são punidas com multas inócuas diante dos lucros político-publicitários que promovem. O problema nem seria o lucro, objetivo claro do jogo do capitalismo. Mas o fato de que a publicidade, ordenando o comportamento dos partidos, ao apostar contra a lei, torna-se, ela mesma, soberana sobre as regras. Torna-se, na prática, a dona da regra.

O que a publicidade ganha não é apenas a manutenção da corrida por votos, mas instaura um espaço de exceção que vale na permissão sustentada pelas multas, e, no nível cotidiano, cria o imperativo antipolítico, de uma atitude que pode ser aceita e somente pode sê-lo em uma sociedade carente de sentido ético e moral. No futebol, no entanto, as regras são tão sagradas que o juiz se torna um “ladrão” odiado, caso desrespeite o estrito regulamento do jogo. O motivo é básico. O abuso de poder contra as regras, que caracterizaria a violência soberana do juiz, acabaria com o jogo. Do mesmo modo, o publicitário, pondo-se no lugar de um juiz que não é julgado, acaba com a política. Assim, o jogo de futebol tem uma ética baseada em regras, a publicidade não. Um juiz ladrão é punido com violência física ou verbal por interromper a lógica do acordo prévio sobre as regras e acabar com a graça do jogo. O publicitário, nesse sentido, é uma espécie de ladrão que tenta ser juiz. Pois legisla contra regras que são maiores que o jogo no qual ele faz as próprias regras.

A inverdade da Lei de Gerson

O caráter pedagógico-político do futebol pode sempre ser minado pela publicidade. Lembremos do episódio envolvendo Gerson, jogador de futebol nos anos 1970 e herói da propaganda de cigarros Vila Rica. Num ato publicitário, promulgou-se socialmente uma “lei” que leva seu nome. “O importante é levar vantagem” tornou-se a fórmula da “Lei de Gerson” que, no Brasil, veio a ser mais famosa do que a Lei de Talião. Deveria ser chamada, com mais propriedade, de “lei do publicitário”. É a lei do autofavorecimento em que cada um se autoriza a ser juiz, mas sob a forma de ladrão. A política, tal como a conhecemos, já tinha sido inventada no Brasil da ditadura, mas era o futebol, mesmo que como desejável ópio do povo, que garantia alguma esperança no espaço d’o político. O estrago n’o político causado por esse enunciado publicitário não perde para o estrago que a ditadura causou entre nós. A Lei de Gerson é o imperativo da ausência de lei, a anomia que, curiosamente, surgiu no período da ditadura como lei total.

Contraditoriamente, ainda que tenha nascido na imagem usada publicitariamente de um jogador de futebol, tal imperativo venenoso não tem nada a ver com futebol. Esporte de equipe, o futebol depende da sinergia do grupo para o bom desenvolvimento da partida. E isso faz pensar que, se este é o país do futebol, necessariamente não deveria ser o país da Lei de Gerson. O chamado futebol-arte dos brasileiros teria “jeitinho” apenas como performance estética, como “jogo de cintura” que não tem nada a ver com “levar vantagem”. Se aqui todo mundo é jogador ou torcedor, juiz, gandula, empresário do futebol, olheiro, locutor de jogos, comentarista ou, mesmo sem querer, participa de algum modo da lógica do jogo, no mínimo, por conhecer alguém ou algo envolvido no “campo”, deveríamos antes de mais nada pensar na questão do espírito de equipe que guarda o sentido do poder e d’o político como ação conjunta.

Assim como o futebol, a política tem dimensão metafísica e estética, mas, como sua base é empobrecida pela corrupção, ela dá a sensação de um dilaceramento da experiência, de coisa falsa. O futebol, ao contrário da política, nos passa uma ideia de experiência verdadeira. E não seria apenas porque o futebol parece mais “oceânico” do que a política. O futebol completa a experiência metafísica e estética com uma dimensão política, a da equipe. Mas a prova fundamental de que o futebol é político se dá justamente pela experiência com a publicidade que, na política tradicional, é sinal de sua derrocada. Fato é que, se podemos inventar um político pela publicidade – pelo uso da imagem e do discurso em sentido retórico –, não podemos, no entanto, inventar um jogador. Podemos até inventar a falsa “Lei de Gerson”, mas não um craque. O jogador de futebol sempre terá de mostrar o que promete diante de sua torcida, que é bem mais complexa que a mera massa manipulada pela publicidade. Seu discurso, sua beleza corporal, seu carisma, seus carros incríveis ou suas roupas de marca, nada disso conta quando ele entra em campo vestido apenas com a camisa do seu time, igualzinha à de seus colegas. O campo de futebol torna-se assim o único cenário da exposição da verdade de que ainda somos capazes. E isso devia nos mostrar um significado maior.

Fonte: Revista Cult
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