terça-feira, 29 de setembro de 2009

“Brasil, ame-o ou deixe-o” não existe mais, por Maria Elena Pereira Johannpeter*


Cantar o Hino Nacional é muito mais que um gesto simbólico, é alimentar em si a consciência de ser um agente transformador da realidade. Quando paramos diante da nossa bandeira, com toda a sua carga histórica e seus emblemas, somos convocados a refletir sobre nosso papel na sociedade, e esse momento é ainda mais importante para crianças e adolescentes, pois estão em plena fase do despertar cívico, em que aprenderão a amar e honrar a sua pátria e a construir desde cedo um país mais solidário e com valores. São crianças e jovens aprendendo a respeitar o espaço físico da escola, sem pichações, sem destruição dos bens físicos, atitudes que, infelizmente, acontecem frequentemente.

A questão ganhou destaque com uma lei aprovada pelo presidente em exercício, José Alencar, que determina a execução do hino, semanalmente, em todas as escolas de Ensino Fundamental do Brasil. Infelizmente, a iniciativa ainda é relacionada, por alguns, ao tempo do regime militar, quando era obrigatória a execução do hino e o hasteamento da bandeira. Só que hoje não se busca aquela realidade do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, slogan criado durante o governo do presidente Emílio Médici, que impunha aos brasileiros escolherem entre serem patriotas ou abandonarem o país.

Esse Brasil não existe mais. No ambiente democrático em que vivemos, podemos nos permitir um sentimento livre, de pertencimento, estimulado pela participação de milhares de cidadãos na construção do desenvolvimento da sua comunidade. Porque não são apenas os governantes que decidem o futuro de um país. A grande força parte da união de todos por uma causa. O voluntariado, por exemplo, é uma bandeira carregada por cada pessoa que dedica seu tempo, seu conhecimento e sua emoção para melhorar uma realidade. Nos jovens, o sentimento de “dá para mudar, é só começar” é ainda mais vivo, mais pulsante, e essa energia precisa ser estimulada e direcionada para o bem do nosso país. O simples fato de reunir os alunos no pátio da escola por alguns minutos para cantar o Hino Nacional é um dos tijolos dessa formação.

É importante, sim, aprender a amar o Brasil. Amar o que é nosso. Sentir orgulho do país onde nascemos, que tem enormes problemas sociais, mas com pessoas extraordinárias dando exemplos de cidadania silenciosamente para serem seguidos em qualquer parte do planeta. Ser patriota é valorizar o lugar onde se mora, participando ativamente na sua comunidade (seja escolar, religiosa, política, empresarial etc.) em busca do bem de todos. Seja por meio do trabalho remunerado ou voluntário, o importante é não esquecer que uma sociedade é composta por diferentes pessoas, raças, etnias, crenças. O patriotismo de hoje é diferente daquele simbolismo imposto pelos governos autoritários e prevê o respeito por quem é da nossa terra e também por quem não é. Afinal de contas, nossa pátria é o mundo.

*Presidente executiva (voluntária) da ONG Parceiros Voluntários

Fonte: Jornal Zero Hora - Nº16019 - 29 de Setembro de 2009.

Veja abaixo a imagem em: clube-do-dvd.blogspot.com/2008/08/download-do...


sábado, 26 de setembro de 2009

A arte de governar por Claudio de Moura Castro


"A história classifica como estadistas aqueles que perceberam as reais necessidades do país, assumiram o risco da impopularidade no curto prazo, mas souberam vender suas ideias com sucesso"

Nas democracias, o governo cumpre os desígnios dos cidadãos. O povo diz o que quer, o governante executa. Parece uma receita infalível. Mas será? Em cidade relativamente próspera de Minas Gerais, uma pesquisa de opinião mostrou que três quartos dos jovens reclamavam da falta de diversões. Apesar de os esgotos serem jogados in natura nos córregos, nem mesmo entre os adultos houve reclamações quanto à falta de tratamento de efluentes. Sabidamente, esse é o investimento que mais faz cair a mortalidade infantil. O que deve fazer o prefeito? Esgotos que salvam vidas ou espetáculos de música sertaneja que trazem votos?

Um livro recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Understanding Quality of Life, mostra abundantes estatísticas sobre o que os latino-americanos mais valorizam. Nelas fica claro o conflito entre o que as pessoas querem e o que é necessário para garantir um futuro promissor para o país. Pesquemos alguns temas do livro. As pessoas querem medicina de alta tecnologia e atendimento hospitalar. Contudo, a saúde pública preventiva é mais barata e evita as doenças. Verificou-se também que o estado de saúde das pessoas pouco se associa com as suas percepções de saúde. No Brasil, pobres e ricos estão igualmente satisfeitos com os serviços de saúde. Mas sabemos serem piores para os pobres. Nos países mais ricos da América Latina, há mais contentamento com a situação da saúde. No entanto, quando o país cresce, baixa essa satisfação. Não dá para entender. No Brasil, 65% dos entrevistados estão satisfeitos com a educação. Somente os mais educados percebem como ela é ruim. De fato, sabemos ser péssima a sua qualidade: último lugar no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) de 2001. Ainda pior, entre 1980 e 2000, em um grupo de 35 países, o Brasil foi o que mais recuou de posição.

Na área econômica, as percepções também estão desalinhadas com a realidade. Mais renda se associa a mais satisfação. Até aqui, vamos bem. Mas o crescimento econômico traz desagrados. Entre outras coisas, requer mudança de políticas, reformas e outros sustos, mais temidos do que a pobreza. Apesar de o desenvolvimento econômico acabar beneficiando os pobres, são eles que mais resistem às mudanças. Ademais, têm uma opinião mais ingênua acerca da competência do governo. Nessa área, entra em cena um mecanismo maldito. As aspirações crescem mais rápido do que a renda.

Em suma, os governados indicam aos governantes algumas prioridades incompatíveis com o progresso. Pensam no curto prazo e são consumistas impenitentes. Dizem que querem sistemas de saúde mais caros (e mais ineficientes). Querem conforto nas escolas e desdenham mais aprendizado. Não querem as reformas econômicas imprescindíveis para crescer.

A reação mais imediata diante dessa miopia nas preferências é perguntar se não seria a melhor receita um governo autoritário, do tipo "déspota esclarecido". Contudo, como Churchill nos advertiu, a democracia é um péssimo sistema de governo, com a agravante de que não há outro melhor. A experiência com déspotas de todos os sabores não mostra um bom registro histórico. Quando acertam aqui, acolá cometem um erro mais estrondoso. Não é por aí. Temos de insistir nos acertos capengas que nos oferece um sistema democrático e na tentativa de esclarecer a opinião pública.

Os governantes se equilibram em um terreno resvaladiço. Se tentam oferecer o que trará mais progresso e desenvolvimento, sem ouvir o povo, arriscam-se a perder sua popularidade e, com ela, seu poder de implementar reformas. Podem acabar execrados e sem reformas (veja-se Jimmy Carter). Governos populistas fecham as portas para o futuro se jogam confete ao povaréu ou alimentam seus anseios imediatistas. Os exemplos latino-americanos estão nos jornais. Em contraste, governantes bem-sucedidos não perdem a ressonância com a sociedade, mas negociam também uma agenda de futuro.

A história classifica como estadistas aqueles que perceberam as reais necessidades do país, assumiram o risco da impopularidade no curto prazo, mas souberam vender suas ideias com sucesso. Na teoria, a receita é simples: visão, coragem e liderança. A pílula pode ser amarga. Churchill jogou pesado quando ofereceu aos ingleses apenas "sangue, suor e lágrimas". Mas ganhou. Pena que não adianta colocar um anúncio classificado do tipo "Precisa-se de um estadista".

Claudio de Moura Castro é economista
claudio&moura&castro@cmcastro.com.br

Fonte: Fonte: Revista Veja - Edição 2132 - 30 de setembro de 2009

Imagem:Ilustração Atômica Studio


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Adorno, a indústria cultural e a internet - Sociologia 2º Ano

Há quarenta anos morria o filósofo da Escola de Frankfurt que se tornou famoso por sua crítica aos meios de comunicação de massa


POR SERGIO AMARAL SILVA *



Esse pequeno trecho da letra de "Televisão", composta por Arnaldo Antunes, Toni Bellotto e Marcelo Fromer, canção que deu título a um dos primeiros álbuns dos Titãs, em 1985, serve de epígrafe a esta matéria, que trata da visão do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), falecido há exatos quarenta anos, sobre a "cultura de massas", que ele preferia chamar de "indústria cultural". Adorno era marxista por formação e sua filosofia funda-se na análise dialética.
A expressão "indústria cultural", segundo consta, foi utilizada pela primeira vez no livro "Dialética do esclarecimento", escrito em colaboração com Horkheimer e publicado em Amsterdã, em 1947. O termo era empregado em substituição a "cultura de massas", conforme Adorno explicaria numa série de conferências radiofônicas proferidas em 1962, porque esta induziria ao erro de julgar que se trata de uma cultura emergindo espontânea e autonomamente, do seio das massas. Essa interpretação enganosa, segundo ele, serviria apenas aos interesses dos donos dos meios de comunicação.
Quanto à televisão, era o principal instrumento dentre os "meios de massa" conhecidos por Adorno há algumas décadas. Espécie de ponta-de-lança da indústria cultural, que, nas palavras do próprio autor, "impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente". Como se vê, os sintomas provocados fazem lembrar o "emburrecimento" de quem não consegue diferenciar os próprios pensamentos e acaba indo viver na jaula dos bichos, de que falam os Titãs.
Segundo Adorno, na indústria cultural tudo se transforma em negócio. Ele diz: "Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais." Para ele, a indústria cultural só se importa com as pessoas enquanto empregados ou consumidores , não apenas adaptando seus produtos ao consumo, mas ditando o próprio consumo das massas. Portadora não só de todas as características do mundo industrial moderno mas também da ideologia dominante, seria a verdadeira origem da lógica do sistema capitalista. Conforme o autor, o homem liberto do medo da magia e do mito torna-se vítima de outro engano: o progresso da dominação técnica, que acaba sendo utilizado pela indústria cultural como arma contra a consciência das massas. Inclusive em seu tempo livre, o indivíduo é presa da mecanização provocada pela indústria cultural, com Adorno dizendo que "só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina adequando-se a ele no ócio"
Assim, a indústria cultural estabelece uma espécie de comércio fraudulento, que promete a satisfação das vontades mas na verdade as frustra, num tipo de jogo perverso de oferecimento e privação, em que um exemplo nítido e atual pode ser dado pelas situações eróticas apresentadas pela internet. Ali, o desejo atiçado pelas imagens acaba encontrando apenas a rotina que o reprime, num mundo virtual. Embora antes do advento da rede mundial, Adorno observava que a situação une "à alusão e à excitação a advertência precisa de que não se deve, jamais, chegar a esse ponto".
Conforme resume o professor Francisco Rutiger, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e autor do livro "Th eodor Adorno e a crítica à indústria cultural" (Edipucrs, 2004): "A crítica à indústria cultural adorniana não perde sua atualidade perante os fenômenos de internet, visto que, enquanto plataforma da cibercultura, essa vem a ser um novo suporte por onde corre, agora em escala ainda mais massiva e imediata, o processo de conversão da cultura em mercadoria."
UMA REDE, TRÊS FORÇAS
Ainda a respeito da aplicabilidade das teorias de Adorno à rede mundial de computadores, o professor Fábio Durão, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, coautor do livro "A indústria cultural hoje" (Boitempo Editorial, 2008), comenta: "O conceito adorniano de campo de força é muito útil para se interpretar a internet hoje. Pode-se pensar em três vetores diferentes coexistindo em tensão no mesmo objeto. Há, em primeiro lugar, a linha críticonegativa, que atacaria aquelas posições ideológicas, que veem na internet uma liberdade concreta. Contra isso, seria preciso mostrar o quanto a internet, ao elevar a produtividade do trabalho, ajudou ao mesmo tempo que aumentassem as desigualdades, tanto entre as pessoas quanto entre os países. O mundo hoje é mais iníquo do que nunca. Porém, o trabalho não aumentou apenas do ponto de vista intensivo, mas também das horas empregadas: em muitos casos, o tempo diante do computador faz lembrar o do operário perante a máquina no começo da industrialização inglesa, ainda que não se compare o esforço físico envolvido. A desregulamentação do trabalho, sinônimo de precarização e aumento da exploração, seria muito mais difícil sem a internet."
O professor Durão prossegue em sua análise, afirmando: "Seria ainda possível abordar vários outros aspectos negativos ligados à internet como o isolamento e os danos psíquicos que podem gerar, o vício, a banalização dos conteúdos, etc. Mas a teoria de Adorno também deixaria entrever todo o potencial utópico da informatização e da conectividade, especialmente do ponto de vista da mobilização das pessoas, e da construção de um espaço para a ação política de grupo e para a prática individual. Adorno sempre foi muito cauteloso em relação a esse momento de liberdade potencial, pois ele temia que uma ênfase nele pudesse ofuscar o impulso crítico.
Finalmente, um terceiro vetor seria o histórico- transformacional. Aqui, a interpretação seria voltada para o desdobramento no tempo dos dois vetores anteriores. Ela apontaria para a luta que vem sendo travada em torno da internet, mostrando todas as tentativas de regulamentação da rede e de sua instrumentalização para a obtenção de lucro, por um lado, e os impulsos de resistência, por outro. Sem dúvida, Adorno não faria objeções à aplicação, neste caso, da contradição entre forças e relações de produção. A internet colocaria em cena o desenvolvimento de forças produtivas que estariam em choque com as relações atuais."
E a tão alardeada interatividade da internet, que privilegiaria uma liberdade individual na medida em que os conteúdos fossem específicos para cada pessoa? Seria relevante a ponto de invalidar a análise dos teóricos da Escola de Frankfurt ?
Sobre eventuais características que diferenciem a internet dos meios existentes na época de Adorno, Fábio Durão salienta que, também nesse caso, é importante que as distinções sejam examinadas juntamente com as continuidades. E acrescenta: "O rádio e a televisão, que Adorno conheceu muito bem, já atingiam milhões de pessoas. A lógica de dominação da indústria cultural - a estandardização e condicionamento como meios de obtenção de lucro - permanece fundamentalmente a mesma. Do ponto de vista do presente, é possível traçar uma linha genealógica mostrando que a internet não representa essa novidade absoluta que muitas pessoas defendem, pessoas que na maioria das vezes têm alguma espécie de interesse envolvido."
NOVAÇÃO OU MAIS DO MESMO?
O professor Durão continua com suas considerações: "Dito isso, é possível avançar para a seguinte hipótese: talvez a novidade maior trazida pela internet, algo que tem a ver com o nosso espírito do tempo como um todo, seja o conceito de diferença. A homogeneização promovida pelo rádio e televisão são drasticamente modificados pela internet. Muitas palavras de ordem da esquerda na época de Adorno tornaram-se valores os mais comuns e universais de hoje. Veja, por exemplo, como todo o vocabulário da transgressão virou moeda corrente, quase como um valor positivo em si. Note bem: não digo que exista hoje uma diferença de fato, mas que aquela estandardização que o Adorno conhecia foi deslocada. A homogeneização agora tem que passar por um momento de afirmação da diferença, uma aparência de multiplicidade, como se cada pessoa fosse realmente singular, as opções virtualmente infinitas, e as possibilidades de autodefinição ilimitadas. De novo, isso é algo que, da perspectiva atual, já pode ser identificado no fluxo televisivo, mas que com a internet atingiu um novo patamar."
Como pudemos observar, a opinião de especialistas contemporâneos permite concluir que a internet, apesar do avanço tecnológico que incorpora, não constitui um meio que represente uma ruptura com os pressupostos básicos da indústria cultural, criticada por Adorno e seus companheiros. Ao contrário, chega a agudizar alguns fenômenos vistos por esses analistas como negativos, a exemplo da desregulamentação das atividades produtivas, que resultaria em aumento da exploração dos trabalhdores. Dessa forma, integrar-se-ia com perfeição àquela indústria, na qual ocuparia um lugar de destaque frente às críticas dos neoadornianos. Ficam propostos a reflexão e o debate.



*Sergio Amaral Silva é jornalista e escritor, ganhador de vários prêmios literários e do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, categoria Literatura.


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Horkheimer
Max Horkheimer (1895-1973) foi um importante filósofo alemão com trajetória, de certo modo, paralela à de seu amigo Adorno, com quem integrou a chamada Escola de Frankfurt. Nos anos 1940, escreveu com Adorno, a "Dialética do esclarecimento". Entre 1951 e 1953, foi reitor da Universidade de Frankfurt.
Consumidores
Em consonância com a teoria marxista, a filosofia adorniana considera que a indústria cultural transforma todos seus produtos em mercadoria, visando obter lucros pelo consumo. O próprio Adorno salientou: "O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer; ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto."
Tempo livre
Segundo Adorno, "se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema".

Internet
Com sua existência comercial situada por volta dos anos 1990, após um período em que ficou praticamente restrita aos meios acadêmicos, a internet teve sua origem na Arpanet, uma rede desenvolvida nos Estados Unidos no final da década de 1950 para fins de defesa militar, e que se baseava no conceito de descentralização do processamento.
Países
Ilustrando com um exemplo sobre investimentos as desigualdades internacionais, Adorno afirmou, em texto sobre a indústria cultural, que os detentores de poder, do ponto de vista econômico, estariam "à procura de novas possibilidades de aplicação de capital em países mais desenvolvidos".
Escola de Frankfurt
Nome pelo qual ficou conhecido o grupo de filósofos e pensadores que se reuniu em torno do Instituto de Pesquisa Social, fundado na década de 1920 na Alemanha. Dele fizeram parte, além de Adorno e Horkheimer, autores importantes como Walter Benjamin (1892 - 1940) e Herbert Marcuse (1898 - 1979), que tinham em comum a preocupação com a "crise da razão contemporânea".

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ciência neutra


No século 17, a busca por um meio de estabelecer a longitude levou cientistas a experimentar com métodos que, se não resolveram o desafio principal, o de assegurar a orientação dos barcos em alto-mar (o que só viria no século 18), trouxeram grandes avanços para a cartografia e a medição de distâncias em terra. Valendo-se da nova ciência da astronomia e dos movimentos dos planetas e seus satélites, Galileu e outros redesenharam o mapa do mundo. Tanto que o rei Luiz XIV da França, diante de um mapa revisado dos seus domínios, reclamou que estava perdendo mais território para seus astrônomos do que para seus inimigos.

Anos antes, um outro rei, Rodolfo II, da Boêmia, tinha tentado fazer o contrário, engajar a ciência, ou o que passava por ciência na sua época, na ampliação dos seus poderes. Rodolfo II tornou-se patrono de todas as artes claras e ocultas de que ouvia falar e recrutou para sua corte, além de artistas e pesquisadores “sérios”, como Tycho Brahe e Johannes Kepler, gente como os ingleses Edward Kelley, um vigarista metafísico, e John Dee, conhecido como conselheiro da rainha Elizabeth I para assuntos esotéricos. Na corte de Rodolfo II, experimentava-se com todos os tipos de divinação e apelo ao sobrenatural (seu astrólogo era o próprio Nostradamus) e dava-se ênfase especial à alquimia, com a qual o rei pretendia eternizar-se. Rodolfo II queria, também, o domínio do tempo e do destino.

Da ciência que prometia onipotência a reis interessados, como Rodolfo II, à que diminuía o território e, portanto, a majestade de Luiz XIV, andou-se um bom caminho na dessacralização do poder, e tudo em menos de um século. Ainda há governantes que se acham autorizados por Deus e a Natureza a reivindicar um poder eterno – ou pelo menos um terceiro mandato –, mas já são raros. E a neutralidade da ciência ajuda a sepultar qualquer presunção de favorecimento divino e qualquer mentira mantida por conveniência política ou vaidade. A ciência da estatística – escrevi tudo isto pensando nos dados recém-publicados pela Fundação Getulio Vargas sobre a melhoria na distribuição de renda no Brasil nos últimos anos – é um bom exemplo de ciência neutra. Não é a favor ou contra ninguém, mas é à prova de falsificações históricas.

Luiz Fernando Veríssimo

Fonte: Jornal Zero Hora - 24 de setembro de 2009 - N° 16104

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A transparência na sociedade democrática, por Claudio Lamachia*

Embora de vez em quando sofra alguns tropeços e arranhões, a jovem democracia brasileira vem se desenvolvendo de forma bem satisfatória para um país que passou tantos anos sob o jugo de uma ditadura militar. De qualquer modo, ainda há muito no que avançar para que se possa chegar à plenitude democrática sonhada por gerações de brasileiros. Estes avanços pressupõem o respeito a princípios democráticos sem os quais o regime não se sustenta. Dentre os preceitos inerentes à sociedade moderna que se almeja, ao lado, por exemplo, dos direitos fundamentais da pessoa, está o princípio da transparência, que deve permear todos os atos que envolvem a gestão da coisa pública.

Não há que haver segredos na administração dos bens públicos, assim como não deve constar sigilo em quaisquer ações de autoridades. As pessoas que exercem cargos nos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, tenham elas sido eleitas pelo voto ou ungidas ao posto por designação, precisam ter em mente que suas vidas e atitudes devem ser pautadas pela total e absoluta visibilidade dos seus atos, sejam eles praticados em praças, gabinetes fechados ou mesmo em conversas telefônicas que digam respeito à condução de assuntos públicos, pois o que está em jogo é o bem maior da coletividade.

O mesmo princípio constitucional que determina ser obrigatória a publicidade dos atos na vida pública – artigo 37 – deveria reger os processos judiciais em que autoridades são demandadas. À exceção de situações que coloquem em risco a intimidade das pessoas, o restante das ações que envolvam agentes públicos deveria ser dado ao conhecimento da sociedade para que esta possa fazer o seu próprio julgamento dos casos. Segredos, reservas ou sigilos ainda são percalços a serem superados para que a nossa democracia alcance níveis mais altos e bem sedimentados. A nação brasileira já tem perfeita compreensão de que o melhor caminho para o amadurecimento das regras democráticas é a divulgação da verdade dos fatos, bons ou maus, sejam quem forem seus protagonistas.

A ocultação da realidade só beneficia culpados e os inimigos da transparência exigível em todos os degraus da administração pública. Em geral, os segredos ligados ao que deveria ser de conhecimento público representam um risco inadmissível para a democracia e que precisamos banir do nosso meio político-administrativo, pois a sociedade tem o direito de saber tudo sobre o seu próprio destino, até para que possa conduzi-lo da melhor forma possível.

*Presidente da OAB/RS


Fonte: Jornal Zero Hora - nº 16101 - 21 de setembro de 2009

domingo, 20 de setembro de 2009

Galpão Crioulo - Cultura Gaúcha



Fonte: http://mediacenter.clicrbs.com.br/templates/player.aspx?uf=1&contentID=61890&channel=45

Herói sem nome: o peão da guerra!, por Antonio Marcelo Pacheco*

Todas as culturas apresentam os seus mitos e símbolos. Independentemente do objetivo que se dê a esses mitos, o sujeito coletivo busca se construir na constante reificação de sua história. Esse é o caso da Revolução Farroupilha, que esperamos mais uma vez comemorar.

Tal revolução, contada e recontada a partir de variados interesses, encarna uma idealização, uma imagem de nossa tradição que necessariamente não reflete toda a verdadeira faceta daquele longo conflito de 10 anos. Entre caudilhos e imperiais, entre uma política econômica do charque e pretensões confusas de ideias republicanas, construímos uma trajetória histórica de independência, orgulho e tradições originalmente únicas. Mas o 20 de Setembro é muito maior do que o culto a Bento, Garibaldi, Anita, Canabarro etc. Essa data é do anônimo guerreiro conhecido por peão. Qualquer peão que, acompanhando o estancieiro, lutou essa guerra sem nem mesmo ter condições de compreendê-la.

É o peão, sem nome específico e sem sobrenome destacado, que figura cavalgando pelo campo do Rio Grande, lutando numa guerra que não é sua, mas que se fez sua na medida em que a relação entre ele e o caudilho era pessoal, marcada pela honra, pela fidelidade e no compromisso da hierarquia e da disciplina. É na aurora dessa revolução que reluzem os peões de todos os cantos de nosso Estado, carregando não o sonho de uma liberdade que nem mesmo é abolicionista, mas que é libertária quanto à ideia do gaúcho, do pampa, do centauro que se confunde com a lenda, do guerreiro que a cavalo é senhor de sua própria estrada.

O 20 de Setembro é mais do que o cerimonial oficial, maior do que os personagens principais desse ato que confrontou o império e o imperador, mais significativo do que uma ideia geral de República que muitos à época não podiam efetivamente compreender. Nessa data, maragatos e pica-paus, castilhistas e borgistas, esquerda e direita, se unem para retocar o fato, a revolução, geralmente esquecendo-se do herói humilde, mas que rebrilha nas cores de nossa bandeira: o peão, verdadeiro senhor dessa história esquecida que começou e terminou da mesma maneira para ele: na honra de seguir o caudilho, na guerra e na paz.

Eis mais um 20 de Setembro. Que do silêncio do campo surja esse cavaleiro, “Cambará” na guerra, “Terra” na paz, vento no tempo da história dessa Revolução Farroupilha!


*Professor de Direito

Fonte: Jornal Zero Hora - nº16100 - 20 de Setembro de 2009.

Recomendo:
Leia mais sobre as comemorações da Semana Farroupilha no:
Jornal Zero Hora na edição online
Site da Semana Farroupilha

sábado, 19 de setembro de 2009

Cadernos do Cárcere - Gramsci nas ciências sociais brasileiras

Os conceitos-chaves do marxista italiano passaram a fazer parte do vocabulário intelectual e político dos países. No Brasil, suas teorias e escritos aparecem no cotidiano, até mesmo no jornalismo, nos discursos e, principalmente, no debate intelectual.

por ÁLVARO BIANCHI


Foi por meio de um movimento cultural proveniente da Argentina que o pensamento e a obra de Antonio Gramsci (1891-1937) começaram a circular mais intensamente no Brasil no começo dos anos 1960. Seu nome já era, entretanto, conhecido neste país, principalmente devido à sua condição de militante comunista e prisioneiro de Mussolini. Surpreendentemente, não foi por meio do então Partido Comunista do Brasil (PCB) que começou a ser divulgado e, sim, pelos socialistas que noticiaram, em 1927, no jornal La Difesa, o processo e a condenação de Gramsci por um tribunal fascista; e pelos trotskistas, como Goffredo Rosini, que publicou um comentário mais extenso sobre o marxista sardo no jornal O homem livre, em 1933.
As referências se tornaram mais frequentes no contexto do movimento antifascista e cresceram em número após a publicação do livro de Romain Rolland, Os que morrem nas prisões de Mussolini, publicado em 1935. A partir do final da Segunda Guerra Mundial as referências a Gramsci se fizeram mais frequentes na imprensa do Partido Comunista. Entretanto, foi após a publicação da obra de Gramsci na Argentina que suas ideias se fizeram mais presentes no Brasil. No começo dos anos 1960, Antonio Cândido, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder fizeram referências ao pensamento filosófico e à crítica literária de Antonio Gramsci.
Coube, entretanto, ao jovem intelectual Michael Löwy, então militante da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-Polop), um uso mais consistente do pensamento gramsciano para a análise de problemas políticos em um artigo publicado em 1962 na Revista Brasiliense. O jovem autor transitava pelos escritos do período do Ordine Nuovo e pelas notas dos cadernos do cárcere reunidas em Note sul Machiavelli para discutir a relação entre consciência de classe e organização política.
Com esse objetivo, Löwy colocava Gramsci ao lado de outros autores, particularmente de Lenin e Rosa Luxemburg para, a seguir, apresentar Georg Lukács como o autor de uma síntese teórica entre a espontaneidade e o sectarismo identificados nos autores precedentes. Gramsci também foi lido e apreciado pelos católicos, como é possível ver no texto que o exilado austríaco Otto Maria Carpeaux publicou, em 1966, na revista Civilização Brasileira, no qual o marxista italiano era apresentado como um santo martirizado, cujo espírito teria ressurgido após a sua morte.
O mesmo Carpeaux referiu-se a Gramsci no último volume de sua monumental História da literatura ocidental, publicado em 1966, afirmando que "Gramsci ocupa lugar iminente na literatura contemporânea: inspirou parte da literatura italiana do pós-guerra; e demonstrou, pela lição e pelo exemplo, o que poderia e deveria ser a literatura proletária em tempos de crise, guerra e reconstrução da sociedade." Ainda nesse ano, Leandro Konder dedicou ao sardo um capítulo de seu livro Os marxistas e a arte.



FOTO: ANTONIO CRUZ/ AB
A referência direta a Gramsci não tardou em aparecer nas obras de Fernando Henrique Cardoso. Um exemplo é Política e desenvolvimento em sociedades dependentes, de 1969, no qual cita o marxista sardo
No final da Segunda Guerra Mundial as referências a Gramsci se fizeram frequentes pelos comunistas
COMO SERIA de se esperar, foi necessária a publicação da obra de Gramsci em português para que suas ideias se difundissem de modo mais intenso. Com base na edição temática publicada pela editora Einaudi na Itália, e na Argentina pela Lautaro, teve início, a partir de 1967, o primeiro projeto de edição das obras de Gramsci no Brasil. Em 1966 foi publicado o primeiro dos volumes projetados (Cartas do cárcere) e, a seguir, Concepção dialética da história (1966); Literatura e vida nacional (1966); Maquiavel, a política e o Estado moderno (1968); e Os intelectuais e a organização da cultura (1968).
Tanto o editor-proprietário da Civilização Brasileira, Ênio Silveira, quanto os tradutores dessa edição tinham vínculos com o PCB. Mas foi apenas na margem desse partido e entre os intelectuais que a obra de Gramsci repercutiu, deixando uma marca apenas tênue no debate político da época.
Essa primeira difusão da obra de Gramsci no Brasil estava ainda muito marcada pela modalidade de difusão que teve na Itália e enfatizava os aspectos filosóficos e culturais da obra do marxista sardo. A publicação do último dos volumes coincidiu com a promulgação do Ato Institucional nº 5 pela ditadura militar e a aguda restrição ao debate de ideias que ocorreu a partir dele. Afastada dos partidos políticos e dos movimentos sociais, foi nas universidades e, principalmente,nos cursos de ciências sociais que essas ideias ganharam sua nova morada.
Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, publicou, em 1967, na revista Le Temps Modernes, o ensaio Hegemonia burguesa e independência econômica: raízes estruturais da crise política brasileira e, embora não citasse Gramsci, parece evidente a inspiração. A referência direta ao marxista sardo não tardou em aparecer e, em Política e desenvolvimento em sociedades dependentes, obra cujo prefácio é datado de 1969, Cardoso o cita, bem como em um artigo de 1974 sobre a questão do Estado no Brasil, depois incluído no volume Autoritarismo e democratização.
Até aquele momento, desde a década de 1960, Oliveiros S. Ferreira, também professor da USP, excursionava pela obra de Gramsci e, em 1972, orientou a dissertação de Mario Innocentini sobre o conceito de hegemonia, sendo o primeiro trabalho acadêmico exclusivamente devotado ao pensamento do marxista sardo. A reflexão de Ferreira desembocaria, posteriormente, em sua tese de livre-docência, defendida em 1983, intitulada Os 45 cavaleiros húngaros na qual destacou, de forma estrita, a relação existente entre hegemonia e consenso, suprimindo o momento da força do pensamento político de Gramsci.
Contraditoriamente, esse destaque permitia que Ferreira atribuísse à força uma posição dominante na política. Ainda nessa universidade, Francisco Weffort citou a teoria do Estado de Gramsci em um estudo sobre as greves operárias de 1968 nas cidades de Osasco e Contagem, procurando, por meio desse autor, distinguir "organizações corporativas" de "organizações políticas". A questão de fundo dizia respeito à própria teoria do Estado e da hegemonia, bem como à decorrente distinção entre as funções de dominação e de representação de interesses.
O mesmo professor, a partir de 1973, tratou da teoria política de Gramsci nos seminários de pósgraduação realizados na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Foi também nesses anos que teve lugar a pesquisa que sustentou a tese de doutorado de Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil, defendida em 1976 sob a orientação do mesmo Weff ort. Nessa tese, seu autor recorreu de modo intenso a Gramsci para construir uma original interpretação de nosso país a partir do conceito de revolução passiva, usado para compreender os processos de atualização/modernização política e social que teriam ocorrido gradualmente, sem rupturas, portanto, e sob o comando do Estado.
Antes dele, um exilado brasileiro, escrevendo com o pseudônimo de José Meireles, publicou, na França, um artigo sobre o papel do Estado no desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro no qual afirmava que "todo o período [do governo Getúlio] Vargas deveria ser visto como uma sequência histórica unificada, constituindo um exemplo do que Gramsci denominou uma revolução passiva".

Gramsci mostrou o que poderia ser a literatura proletária em tempos de crise e reconstrução da sociedade.




Laboratório de Gramsci
 



Autor de O laboratório de Gramsci, Álvaro Bianchi pretendeu estudar a relação entre Filosofia, Política e História nos Quaderni del cárcere - os escritos que o filósofo italiano Antonio Gramsci produziu na prisão. Dessa maneira, a partir desses conceitos fundamentais para a obra de Gramsci, é possível compreender a unidade entre teoria e prática e sua relação com outras áreas do saber.

A obra oferece um conjunto de ideias que devem ser lidas não somente por especialistas, mas por militantes da construção de uma sociabilidade para além do Capital, pois faz uma síntese absolutamente necessária de militância e conhecimento tão difundidos principalmente nos meados de 1970. Os Quaderni del carcere são necessários para uma reconstrução mais rigorosa no percurso da formulação de argumentos e conceitos teóricos gramscianos.

Neles, está presente a marca de um pensamento vivo, capaz de informar uma renovada prática teórica e política engajada em projetos de emancipação social. O contexto da luta contra as ditaduras latino-americanas, simultaneamente ao processo de crise e decomposição das organizações tradicionais da esquerda, possibilitou que nosso continente fosse um ambiente favorável à recepção das ideias gramscianas.

Os conceitos-chaves de Gramsci como "hegemonia", "bloco histórico", "intelectual orgânico" e "sociedade civil", passaram a fazer parte do vocabulário intelectual e político dos países. Suas formulações e ideias são trabalhadas com maior intensidade na América Latina, mais até do que em seu próprio país. Suas teorias e seus escritos aparecem no cotidiano da prática política brasileira: no jornalismo, nos discursos e, principalmente, no debate intelectual.

O CONCEITO DE REVOLUÇÃO passiva revelou-se uma poderosa ferramenta para compreender a realidade brasileira. Carlos Nelson Coutinho lançou mão dele no ensaio Cultura e Democracia no Brasil, publicado em 1979, e Vianna voltou a essa interpretação no artigo Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira, de 1996. Nele, seu autor expandia o uso do conceito de revolução passiva para dar conta, de modo abrangente, das sucessivas transformações políticas na história do Brasil.
O artigo concluía apresentando uma interpretação positiva da revolução passiva, identificada pelo autor na ação política do PCB a partir de 1958. A leitura de Vianna recebeu fortes críticas que indicavam a inadequação da interpretação da revolução passiva como um programa político das classes subalternas. Essa primeira recepção de Gramsci nas Ciências Sociais brasileiras teve como característica o fato de tratar Gramsci como um pensador da política. Foi como componente fundamental da reflexão a respeito das múltiplas dimensões da política e, particularmente, da teoria do Estado, que Gramsci passou a ser lido.
Os temas da Filosofia e da cultura que marcavam o período anterior ao AI-5 não desaparecem, entretanto. Assim, a questão da ideologia era lida em uma chave althusseriana que não deixava de esconder a forte presença de Gramsci na tese de doutorado defendida por Miriam Limoeiro Cardoso sob orientação do professor Luiz Pereira. Também na Sociologia da USP, Sérgio Miceli tinha Gramsci como uma das chaves teóricas a partir das quais procurava pensar os intelectuais.
Afastadas dos partidos políticos, as ideias do marxista sardo ganharam força nas universidades
FOTO: ROOSEWELT PINHEIRO / AB / SXC
COM OS PRIMEIROS SINAIS de crise da ditadura militar teve lugar um intenso debate político que encontrou em Gramsci um de seus protagonistas. Sinal dos tempos: em 1976 já era possível Carlos Nelson Coutinho publicar um artigo no Jornal do Brasil a respeito do marxista sardo.
A intensidade do debate cresceu nos anos finais da década de 1970 e atingiu seu ápice por ocasião da publicação, em 1979, do ensaio A democracia como valor universal, no qual Carlos Nelson Coutinho traduziu algumas das ideias do eurocomunismo para a realidade brasileira.
Nesse ensaio, publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira, Coutinho defendeu que a "via prussiana" brasileira teria alcançado seu ápice no regime militar instaurado em 1964.
As forças populares deveriam lutar contra essa tendência elitista, procurando invertê-la e eliminar os seus resultados nas diferentes esferas do ser social brasileiro - o que se confundiria com a luta pela renovação democrática no Brasil, pressuposto necessário para o avanço rumo ao socialismo. Essa visão implicava reconhecer na democracia um valor absoluto e a unidade (hegemonia) como um valor estratégico.
O debate em torno das teses de Coutinho não se restringiu ao PCB e suscitou intervenções importantes de militantes que se identificavam com o recém-criado Partido dos Trabalhadores, como as de Francisco Weff ort e de Marilena Chaui e, ainda, de comunistas críticos às orientações predominantes no PCB e que se expressavam em revistas como Debate, editada primeiro na França por exilados e depois no Brasil, e a já citada Encontros com a Civilização Brasileira. É interessante notar que, nesse debate, Gramsci ocupou posições não apenas em partidos e organizações diferentes como em trincheiras antagônicas.
O próprio Coutinho procurou consolidar a posição de Gramsci a seu lado com a publicação daquela que iria se tornar uma das matrizes de interpretação do pensamento de Gramsci no Brasil, matriz na qual o autor dos Quaderni aparece, ao lado de Togliatti, como um precursor das ideias do eurocomunismo contemporâneo. Ao mesmo tempo em que se manifestaram de modo intenso no debate político, as ideias de Gramsci encontravam novos espaços de expressão nas universidades.
No final dos anos 1970, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por iniciativa do professor Demerval Saviani, teve início a difusão do pensamento de Gramsci nos cursos de Educação. É do mesmo período a apropriação dessas ideias nos cursos de Serviço Social.
Vianna recorreu a Gramsci para construir uma interpretação do Brasil pelo conceito de revolução passiva
Também no final dos anos 1970, o pensamento de Gramsci passou a ocupar um espaço maior no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Nesse momento teve início a pesquisa de Edmundo Fernandes Dias sobre o pensamento de Antonio Gramsci. Dias, que havia tomado contato com as ideias de Gramsci ainda no Rio de Janeiro, em 1974, contribuiu decisivamente para o progresso dos estudos a seu respeito no Brasil, destacando de modo precursor os escritos de juventude do marxista sardo.
A questão-chave que parece organizar sua pesquisa nesse período é a da complexa relação entre partido, sindicatos e conselhos fortemente presente no debate político da época. A questão aparece de modo intenso nos escritos gramscianos do período chamado Bienio Rosso (1919-1920), mas a hipótese que sustenta a pesquisa vai além dessa constatação óbvia e se assenta na ideia, em grande medida inovadora, de que a questão da hegemonia já se encontra presente, em 1916, "em estado prático".
Essa valorização do pensamento do jovem Gramsci permitiu a seu autor construir uma leitura na qual a reflexão central de Gramsci é a necessidade de se pensar a questão da revolução socialista. Colocando a questão desse modo, Dias apresentaria a formulação mais consistente de uma interpretação alternativa àquela apresentada por Carlos Nelson Coutinho.
FOTO? RICARDO STUCKERT / AB
O tema da política continua a ser privilegiado, ao lado do pensamento filosófico e pedagógico de Gramsci. Mas novos temas têm entrado na agenda de pesquisa, como as relações internacionais e a Psicanálise
GRAMSCI TAMBÉM ocupou seu lugar na Filosofia da Unicamp, onde, em 1982, Michel Debrun defendeu uma tese de livre-docência sobre a Filosofia do marxista sardo publicada postumamente. Sua heterodoxa leitura encontrava em Gramsci a afirmação de um papel estruturador da Filosofia em relação às demais superestruturas.
Debrun apresentava uma Filosofia em Gramsci que assumia uma démarche teórica na medida em que, por um lado organizava o discurso gramsciano, dando-lhe coerência, e, por outro, importantes conceitos como hegemonia e sociedade civil aproximavam teoricamente a Filosofia do âmbito da política.
Além de Dias e Debrun é importante destacar, ainda, o grande número de professores e pesquisadores da Unicamp que utilizou o pensamento de Gramsci de modo diverso e criativo em suas pesquisas: Evelina Dagnino, Octávio Ianni, Renato Ortiz, Edgar de Decca, Sebastião Velasco e Cruz, Walquíria Leão Rego e Ângela Araújo, entre outros.
Embora a referência a Gramsci fosse cada vez mais frequente a partir do final dos anos 1970, tornando-se seu pensamento um importante capítulo da gramática das Ciências Sociais brasileiras, a difusão das ideias de Gramsci nas universidades e centros de pesquisas permitiu ultrapassar os estreitos limites da Filosofia e da crítica cultural que haviam sido impostos a seu pensamento. Mas apesar de novas áreas do conhecimento terem sido abertas a suas ideias, essa recepção pareceu seguir a lógica das especialidades que a própria edição temática dos cadernos impunha.
O marxista sardo foi apresentado, desse modo e com raras exceções, como um cientista político, um sociólogo, um historiador, um assistente social ou um educador a depender das circunstâncias. Mas o caráter orgânico de seu pensamento perdia-se nessa fragmentação. Subsumido nos quadros conceituais de cada uma dessas disciplinas, Gramsci aparecia frequentemente como mais uma referência em meio a outras tantas.

As ideias de Gramsci deixaram de expressar complexos conceitos para se tornarem slogans políticos

Por sua vez, a rápida emergência de Gramsci no debate político teve efeitos nem sempre positivos. Uma tendência a confundir o debate teórico com o debate político-conjuntural foi preponderante, ignorando as advertências do próprio Gramsci que destacava as diferenças entre o "front político" e o "front filosófico" Tornou-se muito frequente, então, referir-se favorável ou desfavoravelmente ao marxista sardo, mas a reflexão paciente sobre sua obra não ocorria com a mesma frequência.
Partidos formais ou informais, bem como movimentos sociais, organizaram-se e construíram suas identidades em torno das ideias de hegemonia, sociedade civil e bloco histórico. Rapidamente estas ideias deixaram de expressar sofisticados e complexos conceitos e se transformaram em slogans políticos. A rápida instrumentalização de seu pensamento teve como consequência sua difusão em um senso comum político e intelectual, mas a contrapartida não foi uma ampliação simultânea dos estudos gramscianos. Gramsci foi, assim, muito citado, mas parece ter sido pouco lido e estudado.
RECENTEMENTE, esse descompasso entre a difusão do pensamento de Antonio Gramsci e a consolidação dos estudos sobre sua obra parece ter diminuído. A publicação de uma nova edição brasileira dos Cadernos do cárcere pela editora Civilização Brasileira coincidiu, desta vez, com um renascimento dos estudos dedicados ao pensamento do marxista sardo.
A partir de meados dos anos 1990, houve a publicação de um número considerável de novos estudos monográficos de autores brasileiros e antigos trabalhos têm encontrado público para reedições. Revistas como Novos Rumos e Outubro têm aberto suas páginas para a reflexão sobre temas gramscianos e publicações acadêmicas como Cadernos do Cedes e Revista de Sociologia e Política editaram recentemente dossiês a respeito. O tema da política continua a ser privilegiado, ao lado do pensamento filosófico e pedagógico de Gramsci.
Mas novos temas têm entrado na agenda de pesquisa, como as relações internacionais e até mesmo a Psicanálise. O que tem caracterizado esses novos estudos é uma maior atenção ao texto gramsciano, um cuidado filológico mais apurado e um tratamento mais intenso das fontes do pensamento do sardo. Sua obra nem por isso foi "despolitizada", mas tem sido mobilizada com propósitos menos imediatistas do que havia sido até então. Com isso tem a ganhar não apenas Gramsci, como também o próprio debate teórico e político.

Sugetões de Leitura:
 
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora nacional, 1965, p. 12.
COUTINHO, Carlos Nelson. Problemática atual da dialética. Ângulos, Salvador, n. 17, 1961, p. 39. Cultura e democracia no Brasil. Encontros com a Civilização Brasileira, n. 17, p. 1949, 1979 Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1981.
VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira. Dados, v. 39, n. 3, p.377-392, 1996.
KONDER, Leandro. Problemas do Realismo Socialista. Estudos Sociais, Rio de Janeiro, n. 17, p. 46-60, 1963. Os marxistas e a arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 109-120.
LÖWY, Michael. Consciência de classe e partido revolucionário. Revista Brasiliense, n. 41, p. 138-160, 1962.
CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de janeiro: O Cruzeiro, p. 3415
WEFFORT, Francisco C. Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco 1968. Caderno Cebrap, São Paulo, n. 5, 1972, p. 22.
MEIRELES, José. Notes sur le role de l'État dans le développment du capitalisme industrial au Brasil. Critiques de l'Économie Politique, Paris, n. 16-17, 1974, p. 98
VVAA. O outro Gramsci. São Paulo: Xamã, 1996 e DIAS, Edmundo Fernandes. Política brasileira: embate de projetos hegemônicos. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2006, p. 21-126.
DEBRUN, Michel. Gramsci: Filosofia, Política e bom-senso. Campinas: Unicamp/CLE, 2001.


ÁLVARO BIANCHI é professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) dessa universidade, secretário de redação da revista Outubro e autor de O laboratório de Gramsci: Filosofia, Política e História (Editora Alameda).

Fonte: Portal Ciência & Vida


quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Crise Mundial:a verdadeira cara do neoliberalismo hayekiano

O neoliberalismo hayekiano pressupõe o Estado como guardião da concorrência do setor privado, coletivizando os prejuízos de tais instituições e nunca os lucros
por ÁDIMA DOMINGUES DA ROSA


A abertura da economia ao capital internacional foi responsável pelo aumento do desemprego, quebra das indústrias nacionais, sem contar a privatização das empresas públicas

A quebradeira de grandes empresas que atuavam em âmbito internacional e principalmente as norte-americanas, como a GM e alguns bancos, mostrou ao mundo algumas facetas do sistema neoliberal, escancarando a todos como realmente se organiza o sistema de ampla concorrência capitalista e de como os gurus da administração gerem as grandes empresas mundiais. Primeiramente, podemos constatar que, como nos disse Friedrich August von Hayek, nos anos 1930, o Estado serve apenas para proteger o sistema de concorrências das grandes empresas.

"O funcionamento da concorrência não apenas requer a organização adequada de certas instituições como a moeda, os mercados e os canais de informação - algumas das quais nunca poderão ser convenientemente geridas pela iniciativa privada - mas depende, sobretudo, da existência de um sistema legal apropriado, estruturado de modo a manter a concorrência e a permitir que ela produza os resultados mais benéficos possíveis".

Assim, enquanto a empresa é lucrativa, ela não precisa do Estado, pois o que quer é apenas se livrar dele para que possa pagar menos impostos. No entanto, quando a grande empresa começa a dar prejuízos, todos pedem socorro ao Estado. Foi o que vimos fazer o presidente dos Estados Unidos com o sistema financeiro e as grandes empresas norte-americanas. "Centro da crise, os Estados Unidos foram o primeiro país a editar um grande pacote de resgate econômico. Em 1º de outubro de 2008, o Senado americano autorizou o Tesouro a gastar até US$ 700 bilhões para estabilizar o sistema financeiro.

Cerca de dez dias depois, o governo anunciou que mais de um terço do valor (US$ 250 bilhões) seria gasto no socorro às instituições financeiras. A aquisição de ações dessas companhias seria uma forma de compensar as perdas sofridas e de municiar os bancos de recursos que pudessem emprestar a empresas e pessoas. Em 24 de novembro, a mãozinha do governo alcançou o Citigroup, dono do Citibank, num plano de compra de ações avaliado em US$ 20 bilhões (que se somariam aos US$ 25 bilhões já concedidos pelo Tesouro ao grupo, quantia retirada do pacote de US$ 700 bilhões). Mas não foi com esse pacote que os EUA começaram a agir contra a crise.

Em setembro, o Federal Reserve (FED), o banco central americano, salvava a American International Group (AIG) com US$ 85 bilhões. Em troca, o FED anunciou que ficaria com 79,9% de participação na seguradora. Ao ver a confiança no mercado desmoronar, o banco também injetou US$ 70 bilhões no sistema bancário americano."

Os momentos de crise são imprescindíveis para repensarmos nosso sistema político e econômico

Esses momentos de crise são imprescindíveis para repensarmos nosso sistema político e econômico e, a partir daí, extrairmos conclusões para que possamos orientar nossas decisões futuras para o País. Como o único poder que possuímos é o voto, temos de refletir seriamente sobre os projetos de cada partido que está no poder, analisando cuidadosamente o que eles oferecem e ofereceram ao País.

Como bem vimos no governo do PSDB, mais especificamente no governo de Fernando Henrique Cardoso que dirigiu o País entre 1995 e 2002, seu projeto político e econômico foi de contenção de gastos, orientando os recursos ao pagamento de dívidas com os bancos internacionais. Ou seja, essa política cumpriu o papel de fomentar e incentivar o obscuro sistema financeiro, enquanto os investimentos internos ficaram "secundarizados". Além disso, a abertura da economia ao capital internacional foi responsável pelo aumento do desemprego e quebra das indústrias nacionais. Ainda não devemos esquecer a principal linha política do PSDB, que é a privatização das empresas públicas.

Tanto é que, em seu governo, a detenção de monopólios de empresas por parte do Estado brasileiro era visto como uma "heresia", por isso privatizou inúmeras empresas, como a Vale do Rio Doce. Pelo menos para nós, brasileiros, a política econômica traçada pelos partidos está ficando mais clara: se existem empresas públicas, vamos conservá-las, pois, assim, poderemos dividir tais recursos com gastos voltados para a população. Muitas das nossas riquezas, muitas delas construídas com o esforço da coletividade, já foram transferidas para mãos de poucos.

O discurso de que a concorrência gera qualidade e o monopólio estatal ineficiência foi bastante fragilizado. Atualmente, as poucas empresas públicas brasileiras que sobreviveram à onda privatizante, como a Petrobras, têm obtido resultados positivos, financiando pesquisas e projetos sociais em todos os lugares do Brasil. Isto significa apenas que o projeto de desenvolvimento do País se realiza e concretiza com a manutenção de suas empresas nas mãos do Estado, coletivizando não só prejuízos, quando necessário, mas principalmente os lucros e benefícios

ÁDIMA DOMINGUES DA ROSA é mestre em Ciências Sociais pela Unesp. e-mail: adimarosa@yahoo.com.br

Fonte: Portal Ciência & Vida

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Cultura de massa - Sociologia - 2º Ano do Camilo



Por Silvano Tenorio Felix

Definir cultura é uma tarefa por demais difícil, já que vivemos um período histórico onde a praticidade toma o lugar dos conceitos. Ainda mais quando se trata da cultura de massa, ou cultura popular, onde encontramos a sua presença em nosso dia a dia, porém falta-nos a reflexão por um momento. Para se chegar de fato a um conceito bem definido.Segundo Orlando Fideli, cultura de massa em nossos dias é um conceito amplo, que abrange por muitas vezes a toda e qualquer manifestação de atividades ditas populares. Assim sendo, do carnaval ao rock, do jeans à coca-cola, das novelas de televisão às revistas em quadrinhos, tudo hoje, pode ser inserido no cômodo e amplo conceito de cultura de massa. (FIDELI,2008:1)

Para entendermos melhor essa expressão "cultura de massa" precisamos buscar uma definição do que seria "massa" e de "povo". Segundo o papa Pio XII, numa célebre radiomensagem de Natal no ano de 1944, expressou muito bem o conceito de "povo" e de "massa". Segundo sua visão, totalmente filosófica "o povo é formado por indivíduos que se movem por princípios. Ele é ativo, agindo conscientemente de acordo com determinadas idéias fundamentais, das quais decorrem posições definidas diante das diversas situações em que vivem. Assim ele fala das massas como "um grupo de indivíduos que não se movem, mas que são movidos por paixões. A massa é sempre passiva. Ela não age racionalmente e por sua conta, mas se alimenta de entusiasmos e idéias estáveis. É sempre escrava das influências instáveis da maioria, das modas e dos caprichos..."

As definições do sumo pontífice nos faz concluir que as massas jamais discordam da maioria. Jamais procuram estipular pontos reflexivos que os levem a um senso crítico sobre as informações que estão sendo assimiladas no momento. A inserção na massa lhe impõe que se vista como os outros, que coma como os outros, que goste do que gostam os outros. Ser, pensar, agir, estar sempre, obrigatoriamente, "como os outros" é amoldar-se inexoravelmente a esse implacável "deus" chamado "todo mundo". É renunciar à própria individualidade, trocando-a pelo amorfo e medíocre "eu coletivo" da multidão. Essa realidade nua e crua que vivemos nos leva a uma pergunta: "PODE A MASSA TER CULTURA? " Certa vez alguém definiu cultura, sob o prisma individual, como aquilo que permanece após ter-se esquecido tudo o que se aprendeu. Segundo

Denise Macedo Ziliotto é preciso Transplantar tal conceito para o plano coletivo, podendo afirmar que cultura é o resíduo, imune à ação do tempo, dos conhecimentos fundamentais dos povos. A cultura de determinada civilização vem a ser, portanto, o conjunto de seus valores e conhecimentos perenes. (ZILIOTTO,2003:23)

O termo cultura tem sua origem na agricultura, em razão da flagrante analogia entre as etapas do cultivo de um terreno e a formação da cultura humana. Com efeito, a cultura de um terreno pressupõe sua limpeza de toda sujeira e ervas daninhas, a aragem e o cultivo dos vegetais desejados. Levando em conta a perspectiva deste conceito análogo, a plantação deverá obedecer determinadas regras. Será preciso plantar, antes de mais nada, coisas úteis, eis que uma cultura de ervas daninhas será uma falsa cultura. Ademais, será necessário plantar em ordem, de maneira que, por exemplo, cada cereal esteja separado dos demais, a fim de que possa receber o tratamento que mais lhe convém.

Segundo Sandra Jovchelovitch a boa cultura exige que se limpem as inteligências de todos os erros e falsas opiniões que comprometem tudo o que nelas venha a ser plantado. É preciso "arar" nossas inteligências, habituando-as a pensar. Pois apenas estudar não significa adquirir cultura: há analfabetos mais "cultos" do que muitos eruditos. Finalmente será chegado o momento de "plantar", ordenadamente, verdades úteis em nossa mente. (Jovchelovitch,2001:42)

Segundo Eclea Bosi a cultura de massa não passa, na verdade, de um oceano de imposições ditadas pelos meios de comunicação, muitas vezes idênticamente destinadas às mais diferentes regiões e povos. Não é por outro motivo que as massas, sejam da América, Europa ou Ásia, apreciam e produzem a mesma arte, vestem as mesmas roupas, gostam das mesmas comidas. Não é por razão diversa que os estilos, as maneiras, as tradições, enfim, a cultura peculiar de cada povo vem dando lugar, em larga medida, a uma triste vitrine universal. (BOSI,2000:102)

Exatamente por não partir genuinamente dos povos, mas ser sempre uma imposição de cima para baixo, a pseudo-cultura se mostra indiferente e imune às profundas diferenças existentes, por exemplo, entre japoneses e italianos, ou entre norte-americanos e árabes: todos consomem o mesmo hamburguer e tomam coca-cola.

Segundo Pedro Demo algo totalmente diverso, porém, ocorre em relação ao povo. Este tem movimento próprio, guardando seus próprios princípios e movendo-se de acordo com eles. Ao povo é dado, portanto, formar sua própria cultura, reflexo evidente das idéias fundamentais que o movem. Ao contrário da chamada "cultura" de massa, a cultura popular tem suas raízes nas tradições, nos princípios, nos costumes, no modo de ser daquele povo. Desta forma, cada povo produz, por exemplo, uma arte peculiar, reflexo de suas específicas qualidades, necessariamente diversa das artes de outros povos. Assim, por exemplo, houve uma verdadeira arquitetura colonial brasileira, muito diferente da arte de escultores de outros povos. (DEMO,2005:93)

Portanto a cultura de massa é uma cultura fabricada pela ideologia que tenta se apresentar como sendo a própria cultura. Porém, a cultura de massa é um sistema de pensamento muito fácil de desmascarar já que tem por característica primeira "o ser limitado". A cultura de um povo jamais poderá ser a cultura de massa, já que a construção da cultura popular se dá pela experiência histórica de um povo, que mediante sua própria história constrói sua identidade.

BIBLIOGRAFIA

FEDELI, Orlando. Cultura Popular e Cultura de Elite, cultura de massa. São Paulo: Associação Cultural Montfort, 2008. p. 1 .

ZILIOTTO, Denise Macedo. Consumidor – Objeto da cultura. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. p. 23.

JOVCHELOVITCH, Sandra. Contextos do saber – Representações, comunidades e cultura. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 42.

BOSI, Eclea. Cultura de massa e cultura popular. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 102.
DEMO, Pedro. Éticas multiculturais – sobre convivência humana possível. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. p. 93.

Imagem: Google

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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O trabalho na balança dos valores

Desprezado e enaltecido no plano moral, o trabalho passou por transformações conceituais decisivas cuja história, da Antiguidade ao mundo pós-industrial, ainda está longe de ter um fim

Seria ilusão imaginar que o conceito de trabalho na história do pensamento ocidental evoluiu por uma linha coerente, apenas modificada neste ou naquele ponto da transformação socioeconômica, política ou religiosa. A experiência do trabalho como esforço para prover a sobrevivência e enfrentar os desafios cotidianos tem acompanhado a humanidade desde seu aparecimento, e nas mais diversas culturas teceram-se modos de sentir e pensar sobre o trabalho. Na encruzilhada de culturas que conviveram em torno do Mediterrâneo e do Atlântico, do século de ouro da Grécia até o começo do 21, o conceito apresentou um movimento que neste texto será indicado apenas de passagem.
Os preconceitos gregos encontraram alguma expressão no texto dos filósofos, como na teoria da atividade criadora de Aristóteles: o artesão é causa motriz da produção, sendo causa material a matéria sobre a qual opera, e causa formal e final o modelo ou finalidade que inspira a criação e aparece na obra acabada. Porém, embora na Antiguidade se encontrem pensamentos sobre a atividade criadora e o tema comece a tomar importância na modernidade entre reformadores e humanistas, o trabalho só se afirmaria como objeto da filosofia na época industrial, quando novas situações políticas, econômicas e sociais mudam a relação com a tradição.

Da dialética senhor-escravo à condição humana

No século 19, o trabalho estava subentendido nas especulações de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo, como também nas imaginações dos primeiros socialistas. Tornou-se centro das análises de Marx sobre a alienação do trabalho industrial na economia capitalista. Continuou a se desenvolver no século 20 entre discípulos e interlocutores do marxismo, como Marcuse, que complementou a análise do trabalho alienado com a do caráter alienante da produção e do consumo no capitalismo tardio, e Hannah Arendt, que, com suas reflexões sobre a vita activa face à vita contemplativa, remete o leitor à cultura clássica, para repensar a condição do homem moderno.
Em A condição humana, Arendt retoma a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência, com o fim de manutenção e reprodução da vida. O modelo é o do camponês sobre o arado, o trabalho na terra. Ressalta a passividade dessa forma de atividade humana submissa aos ritmos da natureza, às estações, à intempérie, às forças incontroláveis. O produto desse esforço é perecível, embora dele dependa a vida de quem trabalha, por isso não é um trabalho livre. A condição humana do labor é a vida.
Por outro lado, o trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis grega, significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte, e corresponde ao artificialismo da existência humana. Poiesis é a obra da mão humana e dos instrumentos que a imitam. O modelo é o do escultor; por seu resultado concreto, o fazer do artista adquire a qualidade da permanência e torna-se presença no mundo, para além da vida de seu produtor. A mundanidade é a condição humana do trabalho.
Por sua vez, a ação ou práxis se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas nem da matéria. Não apresenta um produto concreto, portanto, não possui a permanência da fabricação. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra do homem. Corresponde à condição humana da pluralidade e realiza a liberdade.
Arendt também analisa a marca da cultura judaica e cristã na concepção ocidental da condição humana, em cujos entrelaçamentos se manteviveram a primazia da teoria sobre a atividade e o menosprezo do trabalho manual. Na tradição judaica, o trabalho se apresentava como castigo, meio de expiação do pecado original, labuta penosa à qual o homem foi condenado. Nos primeiros tempos do cristianismo, o trabalho continuou a ser visto como punição, embora servindo à saúde do corpo e da alma. Nos mosteiros medievais, devia ser alternado com a oração e limitar-se à satisfação das necessidades básicas da comunidade.
Imagem: Creative Commons

Labor: segundo Hannah Arendt, o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico voltado à sobrevivência. Está submissa aos ritmos da natureza, por isso não é trabalho livre.

Weber e Marx

Com a ampliação das fronteiras geográficas pelas navegações e a nova percepção do universo pelas descobertas científicas, no Renascimento começaria uma inversão de valores sobre a vida contemplativa e a vida ativa. A inversão moderna tomou, de um lado, integrado ao ressurgimento da cultura antiga, um sentido humanista, em que o trabalho passou a ser visto como expressão da força do homem. De outro, tomou significação religiosa, situando-se no âmago da Reforma Protestante, na qual a moral do trabalho se constrói sobre a convicção de que a dedicação profissional dignifica o homem, dando assim uma nova iluminação à moral cristã. Sobre a relação entre a ética protestante e a ideologia do trabalho no capitalismo, é preciosa a interpretação de Max Weber, oposta à de Marx quanto à relação entre economia e religião.
A análise crítica do trabalho no mundo industrial feita por Karl Marx, no entanto, permanece válida e definitiva como denúncia da exploração e da alienação do trabalho no século 19. Marx não só fez a análise exaustiva das relações de trabalho na sociedade capitalista, com acréscimo de conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo, mas em muitos textos deixa transparecer uma teoria antropológica do trabalho. Como para Hegel, em Marx o trabalho é o fator que faz a mediação entre o homem e a natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza dos indivíduos depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. No processo de trabalho, participam o homem e a natureza; nele o homem inicia, controla e regula as relações materiais entre si e a natureza; e pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza. O trabalho é "o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza" e assim, por meio de do trabalho, o homem se transforma a si mesmo.
Hannah Arendt criticou a forma de Marx encarar o trabalho, basicamente pelo fato de a análise marxista priorizar a produção em detrimento da ação, o econômico antes do político, o que reforçaria a tendência do mundo industrial à transformação de toda atividade em labor e à diluição do político no social. A tensão permanente em toda a reflexão sobre o trabalho, que ainda aparece na polarização atual entre as interpretações de Marx e Arendt, é a da valoração relativa do trabalho e do ócio como ocasião de realização do homem, criador e livre.
Por um novo conceito de criatividade

A balança dos valores de ócio e trabalho, que assim como era na Antiguidade seria invertida entre os modernos, encontra um ponto de questionamento interessante no manifesto de Paul Lafargue - O direito à preguiça -, no qual, de acordo com as tradições da filosofia e do humanismo, o fundador do Partido Socialista francês faz a crítica da ideologia do trabalho predominante na sociedade burguesa mesmo entre os trabalhadores, instigando à luta pela diminuição da jornada de trabalho.
Quando a automação toma formas antes nunca imaginadas, com a revolução cibernética e as novas tecnologias de comunicação, impõem-se hoje perguntas que a história do conceito não responde e estão dadas como tarefas para o futuro, ante os desafios do mundo do trabalho pós-industrial:
Será o trabalho o único modo justo e digno de prover a sobrevivência? Será o modo principal de dar sentido à vida? Será o único ou o melhor meio de alguém se fazer reconhecer como cidadão e como pessoa de bem? Ou poderiam ser mais valorizados a dedicação à família e aos amigos, a criatividade no âmbito do convívio e do lazer, a arte pela arte, o esporte, a participação em atividades comunitárias, os serviços voluntários, a política, a vida do espírito? Quando se perceber que o homem trabalhador é mais do que seu trabalho, será possível construir um novo conceito de criatividade humana apto a dar respostas para as novas situações deste tempo em que o fantasma do desemprego assombra a juventude.
Algumas concepções clássicas de trabalho

Na Política, Aristóteles afirma que o trabalho é incompatível com a vida livre e defende o ócio, diferenciando-o da preguiça. Segundo ele, "exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade". É no ócio que o homem encontra a virtude, qualidade relacionada à prática. Para a Antiguidade Clássica, os cidadãos não deveriam ser artesãos, mercantes ou camponeses, pois não restaria tempo para as atividades política, filosófica e artística.
Para Santo Agostinho, o trabalho era um preceito religioso. Trabalhar e rezar deveriam ser as atividades gloriosas de todos os cristãos. Ele considerava a agricultura a principal atividade humana, verdadeiro ato religioso. O labor era, portanto, uma forma de impedir que o ócio conduzisse o homem aos vícios. No livro Sobre o trabalho dos monges, ele apresenta a doutrina do trabalho manual, dissolvendo os argumentos que existiam na época contra esse tipo de labor.
O trabalho como garantia de salvação eterna: essa é uma das ideias presentes da teologia protestante. Para Max Weber, o enaltecimento do trabalho foi decisivo para o desenvolvimento do capitalismo industrial. O sociólogo explica que, para o protestantismo de João Calvino, as habilidades do trabalho devem ser incentivadas, na medida em que são ofertas divinas. A teoria da predestinação afirma que um dos sinais de salvação é justamente a riqueza acumulada. Incerto seu destino, o fiel buscaria, incessantemente, o trabalho e o lucro.
A ideia de Hegel, de que o trabalho é a mediação entre o ser humano e o mundo, está presente no livro Lições de Jena (1803-1804). Ele afirmava que o trabalho era uma atividade espiritual e que o homem só podia ser realmente homem se fosse capaz de satisfazer suas necessidades por meio do trabalho. Segundo Hegel, que formulou a primeira teoria filosófica do trabalho, a atividade
faz com que o egoísmo seja substituído pela realização das necessidades de todos. A liberdade em sociedade também seria fruto do trabalho.
A crítica do trabalho no mundo industrial feita por Karl Marx permanece definitiva como denúncia da exploração do trabalho no século 19. Marx fez a análise das relações de trabalho trazendo conceitos novos como trabalho concreto e abstrato, trabalho morto, trabalho vivo. Como para Hegel, em Marx o trabalho faz a mediação entre homem e natureza. Os homens definem-se pelo que fazem, e a natureza individual depende das condições materiais que determinam sua atividade produtiva. Pelo trabalho se altera a relação do homem com a natureza.
Em A condição humana, Hannah Arendt retoma a distinção grega das três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação. O labor corresponde ao processo biológico do corpo do homem pela sobrevivência. O trabalho propriamente dito, que corresponde à poiesis, significa fazer, fabricação, criação de um produto por técnica ou arte; corresponde ao artificialismo da existência humana. A ação, por sua vez, se exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas nem da matéria. É o domínio da atividade em que o instrumento é o discurso, a voz e a palavra.




Fonte: Revista Cult - Edção 139
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